sábado, setembro 07, 2013

Afronta à Justiça - MIGUEL REALE JUNIOR

O ESTADO DE S. PAULO - 07/09

O deputado Natan Donadon foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) à pena de 13 anos de reclusão por crime de peculato, consistente no desvio de mais de R$ 8 milhões da Assembleia Legislativa de Rondônia, em contratos fraudulentos de publicidade. Encarcerado no presídio da Papuda, em Brasília, o deputado foi à Câmara, algemado, para se defender perante os colegas no processo de cassação que se instaurara, em que o relator, deputado Sérgio Zveiter, propunha a perda do seu mandato.

Anteriormente o STF entendera que, transitada em julgado a condenação, se operaria sem necessidade de apreciação pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado a perda do mandato do deputado ou senador. Recentemente, no entanto, fixou-se orientação contrária, fazendo depender a decretação da perda do mandato eletivo de reconhecimento pela Casa a que pertence o parlamentar.

O desacerto dessa orientação ficou claro na manutenção pela Câmara do mandato do deputado Donadon, que, além de ultrajante, expõe conflito inadmissível entre Poderes, com afronta à decisão judicial da mais alta Corte e contraposição ao conjunto normativo constante da Constituição federal e do Código Penal. A permanência do mandato de Donadon, que saiu da tribuna para, também algemado, voltar ao presídio da Papuda, tornou-se absurda: o presidente da Câmara, diante da perspectiva de o deputado permanecer encarcerado em regime fechado até abril de 2015, convocou o suplente a assumir o cargo diante da impossibilidade de Donadon desempenhar suas funções.

Antes de examinar o significado político da decisão, cumpre analisar os aspectos técnico-jurídicos. O artigo 14 da Constituição estabelece as condições de elegibilidade, sendo uma delas o pleno exercício dos direitos políticos. No artigo 15 se estatui que a perda ou suspensão do direitos políticos se dará, entre outros motivos, no caso de "condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos", ou na hipótese de "improbidade administrativa", tal como prevê o artigo 37, § 4.º da Carta Magna. O artigo 55 da Constituição também prevê a perda do mandato de deputado ou senador que "perder ou tiver suspensos os direitos políticos", bem como o parlamentar que "sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado".

Já o Código Penal, no capítulo relativo aos efeitos da condenação, no artigo 92, dispõe que é efeito da condenação a perda do mandato eletivo em duas circunstâncias: condenação a pena igual ou superior a um ano por crime "praticado com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública" ou na hipótese de condenação por qualquer tipo de crime a pena privativa de liberdade superior a quatro anos.

Diante desse panorama, a conclusão parece fácil na linha da perda do mandato eletivo em face da condenação transitada em julgado por crime contra a administração pública com pena de 13 anos de reclusão. Mas, não.

O § 2.º do artigo 55 da Constituição é absolutamente contraditório, pois, de um lado, determina que no caso de suspensão dos direitos políticos a perda do mandato será declarada pela Mesa da Casa a que pertence o parlamentar, porém na hipótese de perda de mandato por condenação criminal transitada em julgado determina que seja "decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta".

A antinomia é flagrante, porque, como a condenação importa em suspensão dos direitos políticos enquanto durarem seus efeitos, como dispõe a Constituição em seu artigo 15, é logicamente inadmissível que mantenha o mandato eletivo quem não possua direitos políticos, requisito essencial de elegibilidade. Como ser deputado quem não pode ser eleito?

Só a interpretação sistemática, em visão de conjunto do ordenamento - pois as normas não são mônadas isoladas, mas partes integrantes de um todo lógico e coerente -, permite, em parte, superar a antinomia e preservar o valor da harmonia entre Poderes, reconhecendo-se caber à Mesa da Câmara ou do Senado declarar a cassação do mandato, e não ao plenário das Casas legislativas, na hipótese de condenação por crime contra a administração ou a pena superior a quatro anos, conforme critério do Código Penal para impor a perda do mandato.

Além da questão jurídica, há a questão ética: a preservação do mandato de Donadon constituiu desprezo à moralidade pública, por se manter como representante do povo alguém condenado por apropriação de dinheiro estatal. A Câmara dos Deputados, ao desfazer da decisão judicial, reconheceu a si mesma como lugar próprio para peculatários comprovados e validou a prática delituosa.

A mensagem da Câmara à população é assustadora ao reconhecer que a condenação por peculato não impede o exercício do mandato de representante do povo, que terá motivo relevante para voltar às ruas. Depois, o fim do voto secreto, buscando dar transparência, imporá, todavia, que, por compromisso partidário ou pessoal, deputado vote no futuro pela não cassação contrariamente à sua consciência. Não resolve, por si, o problema. Foi apenas tentativa de lavagem de imagem da Câmara dos Deputados.

Donadon, contudo, foi declarado impossibilitado de exercer suas funções por estar em regime fechado. O ministro Luís Roberto Barroso, por esse motivo, entendeu que caberia à Mesa da Câmara decidir, e não ao plenário. O ministro inovou ao dar relevo ao sistema prisional, sendo estranho admitir que parlamentar em regime semiaberto vá do cárcere ao plenário e deste ao cárcere para dormir.

No processo do mensalão, no entanto, o Supremo Tribunal decidiu manter a decisão de caber à Mesa declarar a perda do mandato, não se prendendo, com bom senso, à isolada letra do § 2.º do artigo 55.

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