domingo, agosto 25, 2013

Um homem sentado em frente ao mar de Ipanema - ADRIANO CALCANHOTTO

O GLOBO - 25/08

Ele terá que sair alguma hora ou pelo menos se mexer, e aí ela estaria salva, livre pra sair também, finge que acredita


Um homem sentado em frente ao mar de Ipanema, meia-noite e vinte, por aí, vestido de preto. De costas para Ipanema, olha o mar. Absorto no que quer que seja, esquece que tem costas, que existe dos olhos para trás, diante do que vê. Não teria como saber se é observado, por uma mulher no sétimo andar de uma varanda de frente para o mar. Mas ela está lá, seus olhos foram fisgados pelo homem de preto sentado na areia de frente para o mar. Feliz, infeliz, agradecido, traído, desenganado?

O mar avança na direção dele, que está imóvel, e ela, no sétimo andar, também. Parou o que estava fazendo, foi dar uma espiada no mar e deparou–se com o homem de costas, e deparou-se com essas perguntas inúteis sobre o que teria levado aquele homem a estar sentado ali na praia de madrugada. Estando sozinho poderá estar feliz?

A mulher tem muito que fazer e sabe disso, mas é difícil sair dali. Fica só mais um pouquinho e vai fazer o que precisa, mas no caminho pega uma maçã na mesa de centro e aí volta à varanda. À direita as luzes brilham no Vidigal. O mar não se faz de rogado. Ela não consegue, continua na varanda quando já devia estar dormindo, tem compromisso de manhã cedinho. E deveria fazer o que tem de fazer logo, sem ficar protelando assim, vigiando a praia e seus frequentadores noturnos e sozinhos.

Com ele a única coisa que acontece é ter os cabelos mais ouriçados pelo vento. Continua na mesma posição, que não indica se está pedindo alguma coisa. Ou pedindo alguma coisa de volta. Ou mais uma vez. Se está agradecendo. Se está tomando coragem para entrar mar adentro sem olhar pra trás. Veio dar um mergulho, mas não imaginava que estivesse frio? Todo de preto, terá um velho calção de banho por baixo da roupa escura feito um céu de madrugada? Ou vestiu-se de preto para vir tomar um banho de mar gelado, vestido?

Ela sabe que não pode continuar ali, mas como sair sem que ele saia antes? Quem sabe quando levante tenha um ar decidido, ou saia trôpego e cambaleante, que é como se sente diante de tantos problemas e quando lembra do pai severo e ríspido, ou talvez se desequilibre e caia de bunda na areia tendo que se sacudir todo feito um cachorro molhado.

O tempo dela está esgotado, mas não pode pensar em outra coisa. “Saia daí, criatura”, pensa ela, sem saber se fala com ele ou consigo mesma. Ele terá que sair alguma hora ou pelo menos se mexer, e aí ela estaria salva, livre pra sair também, finge que acredita. Sabe que, enquanto ele não sumir do seu campo de visão, não vai conseguir fazer o que precisa, urgentemente, fazer. Ou ir pra cama logo, agora, descansar, para acordar ainda mais cedo amanhã e fazer o que não consegue fazer hoje, mas deveria. Está paralisada na varanda para o mar de Ipanema, embutida em um roupão de hotel, com uma maçã esquecida há horas na mão direita. À esquerda, as pedras do Arpoador, contra as quais o mar se bate como se não houvesse amanhã.

Os cabelos do homem e as folhas dos coqueiros se movem para a esquerda. Até os cabelos dela no sétimo andar esvoaçam com o sudoeste nervosinho. Pelo calçadão passa um casal, um apoiado no outro, ele leva uma garrafa de champanhe na mão, ela os sapatos de salto. Frouxos de rir, balançam mas não caem, doce balanço caminho do mar, ele apoiado nela que está apoiada nele, às gargalhadas. Ela não parece que vai desperdiçar um mergulho no mar com seu vestido de paetê curto demais, ele já tem o paletó no braço, a cada passo dela o vestido sobe mais.

O homem de preto agora... cadê? A mulher no sétimo andar do hotel perdeu o homem de preto, ele saiu sem avisar, será que um amigo veio buscá-lo? Será que tem amigos? Ou levantou e seguiu mesmo em frente sem olhar pra trás? Ela está livre, mas quem disse que queria estar? Como pode perder assim o homem distraída com um vestidinho mal cortado? Está livre, agora, sim, mas para quê? Dormir para conseguir ficar de pé durante o dia de amanhã, que vai ser duro, e assim perder ao invés de ganhar uma noite de lua de frente para as Cagarras, ou fazer o que precisa fazer. Está exausta, acabou de fazer um show solo no terraço do hotel, logo acima da sua varanda. Escolhe sentar-se, abrir o laptop e escrever a crônica para o jornal de domingo, ufa.

Na crônica ela não consegue escrever nada além de:

ONDE ESTÁ O AMARILDO?

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