sexta-feira, agosto 09, 2013

Por maior transparência fiscal - MÁRCIO GARCIA

VALOR ECONÔMICO - 09/08

O ministro Mantega enviou, no mês passado, carta à diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, solicitando revisão metodológica do conceito de dívida bruta. O que parece motivar o ministro é que tal revisão retiraria da dívida bruta os títulos do Tesouro em poder do BC que não estivessem servindo de lastro para operações compromissadas. A alteração reduziria a dívida bruta de 68% para 58,7% do PIB (dados de dezembro de 2012), trazendo-a para abaixo do patamar de 60%, que costuma ser visto como limiar de endividamento excessivo.

Independentemente da motivação do ministro, é fato que o BC vem utilizando a nova metodologia da apuração da dívida bruta há vários anos. Também é fato que a nova metodologia apresenta vantagens. Veja-se, por exemplo, o que vem ocorrendo neste ano, quando a dívida do Tesouro vem sendo liquidamente resgatada. Como o Tesouro só tem conta no BC, um resgate de títulos públicos tem como contrapartida uma emissão monetária no mesmo valor. Para manter a taxa Selic na meta fixada pelo Copom, o BC tem que enxugar a liquidez criada pelo resgate de títulos. Ou seja, no final do processo, os títulos emitidos pelo Tesouro foram substituídos por operações compromissadas do BC com lastro em títulos do Tesouro. Portanto, a medida de dívida não deveria variar. E, de fato, no novo conceito de dívida bruta do BC, quase não variou: passou de 58,7% do PIB, em dezembro/2012, para 59,3% do PIB, em junho de 2013. Já no conceito tradicional, usado pelo FMI, a dívida bruta caiu de 68% para 64,8%, posto que os títulos públicos que lastrearam as operações compromissadas já constavam da dívida bruta. Assim, o resgate de títulos do Tesouro, apesar de integralmente substituídos pelas operações compromissadas, reduziram a dívida bruta, no conceito tradicional.

A discussão proposta pelo ministro é relevante e merece atenção. Mas, se de fato o ministro quiser melhorar nossa contabilidade fiscal, a discussão deveria ser mais geral e abranger bem mais do que a mera revisão do conceito de dívida bruta. Afinal, nos últimos anos, sob a batuta do ministro e de seu muito operoso secretário do Tesouro, o governo tomou uma série de medidas que implicaram lamentável perda de credibilidade dos números fiscais. Viria em muito boa hora, portanto, um debate amplo sobre como aprimorar nossas desacreditadas contas fiscais.

Há muitas questões importantes a tratar nesse debate. A primeira tem a ver com a apuração do resultado primário. Como se sabe, o déficit primário é excesso de gastos, exceto juros, sobre a arrecadação do governo. A despesa com juros depende da taxa de juros e do tamanho da dívida. Nos últimos anos, o Tesouro tem emprestado centenas de bilhões de reais aos bancos públicos, sobretudo ao BNDES, a taxas menores do que o custo de captação do Tesouro, para que realizem empréstimos, em geral, pesadamente subsidiados.

Uma subestimativa do subsídio dado pelos empréstimos ao BNDES seria a diferença entre a Selic e a TJLP, hoje em 3,5 pontos percentuais. Exceto por uma pequena parte, tais subsídios não aparecem nas contas públicas como despesa primária, mas, sim, como despesa de juros1. O que é conceitualmente incorreto. Afinal, dar subsídios para o BNDES emprestar a juros baixos para empresas é um gasto primário, tal qual qualquer outro. Deveria constar do orçamento. A metodologia atual mascara esse gasto na conta de juros, dificultando a avaliação da sociedade sobre os custos e benefícios dessa política pública que tem sido fonte importante de aumento da dívida pública. Os empréstimos do Tesouro a bancos públicos também deveriam estar incluídos no orçamento.

A explicitação, como despesa primária, do custo efetivo do subsídio para o Tesouro teria o benefício adicional de desencorajar os truques contábeis que vêm minando a credibilidade de nossas contas fiscais. Como se sabe, os aportes de recursos subsidiados do Tesouro têm permitido que estatais gerem lucros fictícios e inflem o superávit primário por meio de pagamentos de dividendos artificiais ao Tesouro. Com o custo total do subsídio devidamente explicitado como despesa primária, não haveria mais espaço para esse tipo de truque contábil.

Outro tópico relevante é a revisão do conceito de dívida líquida. Grosso modo, a dívida líquida é a dívida bruta deduzida de certos ativos financeiros do setor público. Dentre esses ativos, estão os empréstimos que vêm sendo feitos aos bancos públicos, cujo montante já ultrapassa os R$ 400 bilhões. É verdade que os pagamentos devidos ao Tesouro por conta de seus empréstimos aos bancos públicos não estão sujeitos à inadimplência nos empréstimos realizados por esses bancos. Não obstante, se as perdas com inadimplência forem grandes o suficiente para exigir a recapitalização de algum banco público (o que já ocorreu várias vezes no passado), a conta irá para o Tesouro. Ou seja, o valor de um R$ 1 emprestado pelo Tesouro a um banco público deveria ser menor do que o valor de R$ 1 aplicado em reservas internacionais, e isso deveria ser reconhecido no cálculo da dívida líquida.

Por fim, seria benéfica a criação de um conselho fiscal, a exemplo do Chile, composto por renomados especialistas de fora do governo, para realizar o cálculo do superávit estrutural, isto é, o superávit corrigido pelo ciclo econômico. Como se sabe, o BC anunciou que tal conceito poderá passar a balizar suas decisões de política monetária. Nada mais natural que a política fiscal também se pautasse por tal conceito. O comitê teria como função aperfeiçoar, dar transparência e consolidar o cálculo do superávit estrutural. Não seria função do comitê definir a política fiscal, atribuição inalienável dos governos democraticamente eleitos. Mas, sim, determinar se a condução da política fiscal estaria ou não sendo compatível com as metas anunciadas pelo governo para o déficit e para a dívida pública2. Certamente seria um passo importante para reabilitar a bastante combalida credibilidade de nossas estatísticas e melhorar a política fiscal.

Agradeço comentários e sugestões de José Roberto Afonso, Mansueto Almeida, Armínio Fraga, Fabio Giambiagi, Gustavo Loyola e Rogério Werneck, eximindo-os completamente de qualquer responsabilidade sobre as opiniões expressas neste artigo.

1 Por exemplo, a taxa de juros do Programa de Sustentação do Investimento (PSI) para financiar máquinas e equipamentos é de 3% ao ano, ante uma TJLP de 5% e uma Selic de 8,5%. A diferença entre os juros do PSI e TJLP é uma despesa primária- equalização de juros - mas o mesmo não ocorre para a diferença entre a Selic e TJLP, que é contabilizada como uma despesa de juros.

2 A Lei de Responsabilidade Fiscal, no Artigo 67, faz menção à criação de um conselho de gestão fiscal. Como é necessária uma lei para a implementação de tal conselho, o debate torna-se ainda mais oportuno.

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