sábado, agosto 10, 2013

Ameaças internas e externas à privacidade - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 10/08

Se nos Estados Unidos, com o estado de direito democrático consolidado, a vida privada foi relativizada, pode-se imaginar a realidade em países como o Brasil



Ao comentar a decisão da corregedoria do Tribunal Superior Eleitoral de ceder a uma empresa privada, a Serasa, informações pessoais dos eleitores brasileiros, pouco mais de 140 milhões de pessoas, o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, e vice-presidente do TSE, comentou: “Tempos muito estranhos nós estamos vivendo no Brasil”, numa reação de surpresa compartilhada pela presidente do Tribunal, ministra Cármen Lúcia, colega de Marco Aurélio no STF, também informada do fato pelo “O Estado de S. Paulo”.

Na realidade, os tempos estranhos ameaçam a privacidade em todo o mundo, à medida que avançam tecnologias capazes de crescentemente vasculhar informações pessoais, armazená-las e processá-las com os mais diversos fins, legais ou não. A arapongagem em alta escala não se dá apenas na relação do Estado com a sociedade, mas de grande empresas do mundo digital e clientes/usuários. Mas no Brasil, tem razão o ministro, a invasão da esfera particular tem características próprias e preocupantes.

O exemplo do momento da fragilidade do direito universal à privacidade vem dos Estados Unidos, por ironia onde a individualidade é marcante na cultura do país, com respaldo numa das mais longevas constituições. Na quinta-feira, o “New York Times” revelou que o raio de ação da NSA (National Security Agency) é mais amplo do que quis fazer crer a Casa Branca. Também e-mails, qualquer outro tipo de comunicação eletrônica e telefonemas de americanos caem no arrastão digital da NSA, desde que o contato seja feito com o exterior ou venha de fora. Não são monitorados apenas suspeitos de participar de algum complô contra os interesses americanos. O grampo no atacado bisbilhota tudo e todos, dada a brutal capacidade operacional da NSA.

No Brasil, em que o estado de direito democrático ainda não é tão consolidado como o americano, a vulnerabilidade das pessoas, do cidadão, e de empresas é maior. Outro aspecto a considerar é que, na revolução digital em curso, equipamentos e técnicas de ponta estão disponíveis a quem puder pagar por eles. É diferente da Era Industrial, em que inovações demoravam a chegar às sociedades com economias menos desenvolvidas.

Acrescente-se que o Estado brasileiro tem longa tradição de buscar a tutela da sociedade. Dono de informações privadas de eleitores, contribuintes, consumidores, pessoas físicas e jurídicas, este Estado, incluindo suas empresas, pode muito, por controlar enormes bancos de dados, para o bem ou mal. A depender do governo de turno. Aqui devem ser lembrados vazamentos dirigidos de informações privadas com fins políticos.

O TSE, na noite de quinta-feira, teve a sensatez de suspender o convênio de repasse de informações à Serasa, como se esperava. Este foi apenas um caso de agressão evidente ao direito à privacidade, conhecido graças ao trabalho da imprensa profissional. Deve haver muitos outros — desconhecidos.

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