segunda-feira, julho 08, 2013

Quem não cala, consente - LÚCIA GUIMARÃES

O Estado de S.Paulo - 08/07

Dois episódios, em seguida ao desastre com o avião da Asiana em São Francisco, ilustram a redefinição do cidadão privado no século 21. Um passageiro exausto, mais de 5 horas depois de conseguir pular do avião em chamas, se queixou por telefone à rádio local de São Francisco que não o deixavam ir para casa. Segundo ele, autoridades no aeroporto tinham criado um curral de sobreviventes não feridos, 123 ao todo, os afastavam da mídia e diziam que eles tinham que "ser processados", o FBI estava para chegar. O próprio governo federal americano já tinha anunciado que não havia o menor indício de terrorismo na aterrissagem catastrófica do Boeing 777 com 307 pessoas a bordo. Ninguém pode entrar num avião com destino aos Estados Unidos sem fornecer data de nascimento, telefone de contato, informações que tornam o passageiro acessível, se é que a NSA, Agência de Segurança Nacional americana, já não está se divertindo com seus e-mails e telefonemas privados.

Por que, depois de passar pelo trauma de um grande acidente aéreo, um cidadão acusado de nada, a não ser de sobreviver, tem seus movimentos cerceados com tanta naturalidade? O âncora da CNN, ao vivo, perguntou timidamente a outro passageiro para confirmar que ele não tinha mesmo direito de ir para casa. A situação, pelo que conferi mais tarde, não foi questionada. O rebanho de sobreviventes ficou à disposição das autoridades.

Zapeando entre canais, logo ouvi a outra notícia ligada ao desastre aéreo. Sheryl Sandberg, a Chefe Operacional do Facebook, anunciou em sua página da dita rede social que estava vivinha da silva. Explicou que ela e seu grupo de amigos e parentes, cujos nomes foram citados, estavam com reserva no mal fadado voo 214 da Asiana mas trocaram de companhia em cima da hora para Sandberg usar suas milhas acumuladas na United. O que estes dois episódios têm em comum? Não falo da hipocrisia de uma mulher com salário anual de US$ 600 mil e dezenas de milhões em ações de sua companhia querer a nossa simpatia por procurar desconto em passagem aérea. Qualquer um sabe que, para a esmagadora maioria de passageiros de meios modestos, milhagem hoje rima com miragem, tal os obstáculos impostos pelas companhias aéreas.

Falo de como os dois episódios ilustram dois lados de uma moeda. Um passageiro que nada fez, além de se salvar de um acidente, não pode ficar calado e ir para casa. A mais poderosa mulher num cargo de COO não quer se calar sobre um momento privado.

É neste contexto que precisamos avaliar a temporada de escândalos sobre a vigilância da vida privada, não mais restritos às atividades da NSA, já que a França, em meio à falsa indignação de Hollande, teve Le Big Brother exposto pelo jornal Le Monde.

Pare e pense onde você estava, há 20 anos. Fazendo vestibular? Trabalhando num escritório? Jantando num restaurante? Tente voltar ao seu estado mental de então e imagine que, em cada uma dessas situações, um estranho se aproxima e lhe pergunta por que você foi rejeitado por uma namorada (cujo status online acaba de dar a dica), por que você não foi convidado para o casamento de seu irmão, por que foi despedido do emprego? Há 20 anos, o rubor da súbita exposição indesejada lhe subiria ao rosto. Hoje, esta exposição é iniciada por você. Mas o uso que podem fazer dela, agora e num futuro distante, escapa ao seu controle.

Sei que o meu desconforto é geracional porque fui criada para entender que a distinção entre o público e o privado, além de um direito civil a ser protegido, faz parte da boa educação. Minha mãe teria recebido o anúncio da Sheryl Sandberg não pelo prisma do hoje arruinado verbo compartilhar, mas sim como sinal de vulgaridade.

Você pode contestar o direito de um agente do governo de lhe interrogar sobre sua viagem à China sem um mandado judicial. Mas não esqueça que já contou tudo via Facebook, Twitter e Instagram.


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