terça-feira, julho 16, 2013

No divã de Lucian Freud - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 16/07

Freud reinventou a arte figurativa porque procurou fixar na tela os estados de espírito do mundo


O MASP tem exposição de Lucian Freud até 13 de outubro. Inveja dos paulistanos. E boas memórias.

Devo ter almoçado com Lucian Freud, neto de Sigmund, meia dúzia de vezes na vida. Almoçar no mesmo espaço, entenda-se, não na mesma mesa. Acontecia no Wolseley, um restaurante londrino em Piccadilly, que piorou drasticamente nos últimos tempos. Mas divago.

Freud almoçava quase sempre sozinho --figura pequena, escanzelada, a lembrar Samuel Beckett nas fotos de Cartier-Bresson-- e, sempre que o via, pensava: vou puxar conversa. Como estudante de história da arte, achava que tinha um bom álibi. Nunca tive coragem e Freud morreu em 2011.

Um dos maiores pintores do nosso tempo? Assino embaixo. E, se não posso ir a São Paulo ver a exposição, pelo menos leio sobre o bicho.

A melhor introdução à obra de Freud foi escrita por Martin Gayford em livro singular: "Man with a Blue Scarf: On Sitting for a Portrait by Lucian Freud".

Gayford, crítico de arte, foi modelo durante um ano e meio para dois retratos do mestre. Escreveu um diário a respeito, embora fosse mais correto dizer "um retrato a respeito". Enquanto Freud o pintava (com tintas), Gayford pintava Freud (com palavras).

Encontramos de tudo. As paixões de Freud em arte e literatura (anote: Ingres, Ticiano, Henry James, Thomas Hardy). Os ódios sulfúricos (Leonardo, Rafael e, sobretudo, Dante Gabriel Rossetti, "o mais próximo que a pintura chegou do mau hálito").

E, sobre política, a velha máxima anarquista: "Nunca devemos votar em ninguém que não conhecemos pessoalmente". Touché.

Depois, os hábitos de trabalho: intransigência na pontualidade dos modelos; esforço físico descomunal (aos 80, Freud pintava de pé, durante horas e horas); composição lenta; resultados dúbios. Era frequente Freud abandonar um retrato depois de meses de trabalho. Martin Gayford pergunta, repetidas vezes, nas páginas do diário: será que isso vai acontecer comigo?

Não aconteceu: no final da odisseia, o retrato lá está. E, quando o modelo se confronta com ele, há uma estranheza inicial que se dissolve no reconhecimento essencial. Aquele não sou eu. Aquele só posso ser eu.

Eis o fundamental da arte de Freud. Críticos preguiçosos dirão que Freud, tal como o seu amigo Francis Bacon, prolonga a lição de Van Gogh: a realidade não existe; o que existe é a carga dramática, e pessoalíssima, com que eu represento a realidade.

Errado. Isso pode ser válido para Bacon. Não é válido para Freud. "Imaginação é ver as coisas como elas realmente são", dizia ele. Tradução: Freud só reinventou a arte figurativa não porque plasmou no mundo os seus estados de espírito, mas porque procurou fixar na tela os estados de espírito do mundo.

Por isso era recorrente a sensação paradoxal de estranheza e reconhecimento quando os modelos viam o produto final. Martin Gayford explica o mistério: porque nós nunca sabemos como somos realmente.

Isso pode soar estranho, sobretudo quando vivemos saturados na orgia fotográfica e narcísica de nós próprios. O problema é que, em filmes, fotos ou ao espelho, nós estamos continuamente a fingir, a representar, a recriar.

E quando não estamos, o filme, a foto ou o reflexo apenas nos devolvem uma ínfima parcela do que somos: a imagem naquele momento, com aquele ânimo, naquela fase do nosso envelhecimento.

Tal não acontece nos retratos de Freud. Durante horas, durante meses, o modelo deita-se no divã do pintor. E este vai perscrutando todas as expressões, todos os momentos de serenidade, inquietude, alegria, cansaço, tristeza. É a totalidade do que somos que interessa nos retratos de Freud, não a nossa fugaz impermanência.

Não admira que o momento mais angustiante do processo aconteça na finalização do quadro. Gayford, uma vez mais, explica: em literatura, um final mediano pode não ser mortal; o leitor já conviveu, página após página, com as flutuações inevitáveis da "loucura da arte" de que falava Henry James.

Mas, no quadro, não há página após página. A forma como o pintor finaliza a obra representa a única página que leremos.

E, no retrato de Martin Gayford, é uma página feita de ironia, melancolia --e com um toque de loucura. "Faz sentido", escreve o próprio sobre o próprio.

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