domingo, junho 30, 2013

No atacado e no varejo - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 30/06

Os centavos reivindicados são, acima de tudo, um símbolo barato do quanto o desvario e a fratura contemporânea estão nos custando caro



Diferente. A onda de protestos que varre o país escapa ao nosso latim. O esforço é o de entender por que diabos. Palpites não faltam. A hora de dá-los é agora. O que se pode dizer com segurança é que se trata de um “viral” de grandes proporções, sem uma pauta muito clara e – ainda que se negue de pés juntos – liderado por jovens universitários da classe média, cuja capacidade de arrastar outros segmentos não é fogo com o qual se brinque. Estão insatisfeitos, tal e qual a mocidade que protagonizou as passeatas da década de 1960 e partiu para a clandestinidade. Sim – qualquer semelhança não é mera coincidência.

O problema é que essas premissas não respondem de todo à “alma assustadora das ruas”. Como se dizia nos tempos idos do existencialismo, há um je ne sais quoi em toda essa balbúrdia. A insatisfação chegou a níveis da diabete mais alta, pois não há quem aguente a açucarada doutrinação otimista promovida pelo governo Lula e replicada no governo Dilma, virada numa mania aqui e ali, como se fôssemos uma legião de joões bobos. Ninguém gosta de se sentir manipulado. E até mesmo os ingênuos, quando se percebem feito marionetes, sai de baixo – botam fogo no Palácio do Planalto.

As raízes da insatisfação, contudo, parecem mais fundas. O sociólogo anglo-polonês Zygmunt Bauman nos dá algumas pistas. Ao explicar o “ponto em que estamos”, Bauman lembra que em meados do século o mundo era bem simples de ser explicado. O problema estava na fome da África, na Guerra do Vietnã, no “Império Americano”. Hoje, ficou difícil entender o que acontece na quadra de baixo, perto de nossa casa. Estamos sem chão, escalando solitários a Torre de Babel.

Outro pensador, o francês Gilles Lipovetsky, segue o cortejo de Bauman e lembra que nos anos 1940, por exemplo, qualquer escolar minimamente informado conseguia cravar bandeirolas num mapa-múndi e falar das razões da Segunda Guerra Mundial. Difícil encontrar quem possa explicar, hoje, as cirandas financeiras ou o que acontece de fato no Iraque e no Afeganistão. Estamos em tranças, como se dizia. Só nos resta recuperar a capacidade de explicar – tecla em que bate outro pensador essencial de nosso tempo, o francês Edgar Morin.

Morin pede um freio à tecnocracia, essa lápide fria que reduz o mundo a números e gráficos. Reivindica a volta do narrador, aquele sujeito que dá sentido ao mundo e que nos permite falar sobre aonde de fato queremos chegar. Por sua tese, a estatística solapa a sã filosofia. Estamos carentes de sentido – e essa afirmação não cabe numa planilha. Ora, a contar pelo que nos dizem esses três estudiosos, não é difícil entender por que a pauta dos manifestantes é, digamos, tão adolescente – intempestiva, romântica, titubeante. A política, a economia, o comportamento, tudo em volta soa tão etéreo, hermético, travestido e esotérico que fica difícil exigir dos jovens uma carta de intenções cartesiana, elegante e sólida. São tempos líquidos e disformes, como ensina Bauman.

Nesse contexto, a insistência na redução da tarifa soa para muitos como um contrassenso fenomenal. De um lado o discurso difuso como o de um lama. De outro, as moedinhas do cofrinho tilintando. Mas pedir 20 centavos a menos faz todo o sentido nesses tempos fraturados. A insatisfação é macro. Sua diluição, micro. E essa é a diferença gritante de 2013 para 1968 ou 1992. Como o mundo nos escapa das mãos – e daí a revolta, pois nos sonegaram o direito de entendê-lo –, resta se apegar ao minimamente possível. Do contrário, estaremos privados de outro ingrediente essencial à saúde humana: a experiência concreta de que algo foi feito, garantia de que teremos coragem de sair da cama no dia seguinte. Os jovens reivindicam a lógica das formigas e das abelhas.

Os trocados barganhados são um símbolo para traduzir o cansaço e do vazio sentido diante de um país que mede o desenvolvimento pela quantidade de carros na rua. Os mais velhos tendem a se cansar de repetir essa cantilena triste. Os jovens, como se sabe, precisam provar, sentir o gosto. Estão pedindo para se mover – pois só enxerga quem se mexe. Por esses dias, mandam um recado, no atacado, sobre o que desejam, no varejo.

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