terça-feira, junho 25, 2013

Eutanásia - FRANCISCO DAUDT

FOLHA DE SP - 25/06

Ponha-se na pele dela, vendo o manto do cárcere da demência se aproximando


A leitora me escreve para contar que sua mãe, antes de completar 70 anos, teve aparente morte súbita enquanto dormia. Ela havia sido uma ótima mãe e cuidado bem, além dos filhos, de todos os velhinhos da família.

Intrigada, a leitora acabou descobrindo que sua mãe havia se suicidado de maneira incrivelmente disfarçada. Seus sentimentos estão confusos, não sabe o que pensar, mas tem muita dor pela perda.

Eis o que lhe disse: Minha primeira reação é de admiração e encantamento pela generosidade dupla e imensa de sua mãe.

Ela que sabia bem o que é cuidar de inválidos, pode ter tido tempo de assistir o filme "Amour" (no Brasil, "Amor"), podia entender a dor que é conviver com um ser amado que apenas parece vivo, mas para nossa agonia extrema, não está mais lá, a demência o levou e deixou a casca irritante e trabalhosa para os entes outrora mais queridos pensarem "por que não morre logo?", e se culparem profundamente por ter tido esse pensamento mais que justo.

Há um momento da demência em que a percebemos tomando conta, mas que ainda não nos incapacitou. Hoje em dia as pessoas falam de Alzheimer, já chamaram de arteriosclerose, mas esses diagnósticos são incertos, por isso uso o genérico "demência", que significa perda progressiva e irreversível das capacidades cognitivas e motoras em direção à vida vegetativa que pode se estender por anos.

Quanto mais quando um complô de médicos gananciosos e familiares culpados inventam expedientes múltiplos que impedem a pessoa de morrer em paz.

Cães têm este direito, nós, infelizmente, não.

Se foi este o caso de sua mãe, se ela percebeu, ainda que tão moça, a demência se avizinhando e usou de sua não pouca inteligência para engendrar uma EUTANÁSIA (do grego, "a boa morte") discreta enquanto podia, não posso senão admirá-la. Imagino que não foi por altruísmo apenas, mas por egoísmo também. Não queria ter a dor de perder-se de si mesma.

Vocês ainda poderiam desfrutar da companhia dela, em momentos cada vez mais curtos, por algum tempo (ninguém sabe quanto)? Por certo.

Mas, ponha-se na pele dela, vendo o manto do cárcere da demência se aproximando e pensando, "daqui a pouco não poderei fazer mais nada para escapar da prisão".

Ouvi certa vez: "a vida é uma doença incurável, sexualmente transmitida, com prognostico fatal em 100% dos casos".

Quê dizer da velhice que, apesar de haver quem a chame de "melhor idade", é mesmo um fardo. A Maude ("Harold and Maude", filme de 1971 que aqui tem o nome de "Ensina-me a viver",) resolveu parar aos oitenta anos, achou que estava de bom tamanho. É uma decisão dolorosa e questionável.

Mas a eutanásia que sua mãe praticou era do direito dela.

Portanto, é seu direito divergir dela, ou mesmo de se sentir abandonada, faz parte do luto.

Mas aprecie o lado dela para guardar seu exemplo de grandeza, e ter compaixão por ela que, mesmo em benefício próprio, se poupou da decadência segundo seus critérios que, suspeito, eram muito bons e lúcidos.

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