sábado, maio 11, 2013

Quem garante a paz? - DOM ODILO P. SCHERER

ESTADÃO - 11/05


Em abril transcorreu o 50º aniversário da encíclica Pacem in Terris, do papa João XXIII. Relendo-a, constato a luminosa atualidade de seus ensinamentos, que mereceriam ser tomados em atenta consideração ainda em nossos dias, marcados por graves crises, guerras, violência difusa e descontrolada, que causam dor, sofrimento e morte.

A encíclica foi publicada em 1963, num momento delicado da guerra fria que, na crise da Baía dos Porcos, quase acabou em guerra aberta. O papa já tinha intervindo com suas mensagens nas situações de guerra em curso na época; com sua encíclica ele contribuiu especialmente para despertar uma consciência mais atenta à superação dos conflitos pelo diálogo e para fomentar um estado de ânimo favorável à paz no mundo inteiro.

João XXIII, já bastante doente, fez seu apelo angustiado partindo das convicções da fé da Igreja, em harmonia com a lei natural e os anseios mais profundos dos povos. Afirmou que o bem da paz não é obra do acaso, nem pode depender apenas de movimentos espontâneos da sociedade, mas precisa ser buscado de forma organizada e com esforço sincero pelos governos de todos os povos e comunidades políticas.

Mais que à lógica diplomática, o papa fez apelo à consciência, ao bom senso e à lógica do coração. Isso explica, em boa parte, a grande acolhida e repercussão da encíclica. "A paz continua apenas um ruído inócuo de palavras, se não for baseada na verdade, construída sobre a justiça, vivificada e integrada pela caridade e posta em prática na liberdade" (n. 60).

Ela só pode ser conseguida no pleno respeito à boa ordem querida por Deus e que se traduz, sobretudo, no pleno respeito a todo ser humano e à sua inalienável dignidade. Por isso o papa tratou longamente dos direitos de toda pessoa e de seus deveres no convívio social. E manifestou seu apreço pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU.

A encíclica também trata das relações entre as pessoas e da natureza e finalidade dos poderes públicos, que consiste em promover e assegurar o bem comum. O primeiro "bem comum" é a tutela da própria pessoa humana e a promoção de seu desenvolvimento integral. Lições ainda não bem aprendidas e dignas de ser retomadas.

Parte consistente do texto refere-se às relações entre as comunidades políticas, que também são sujeitos de direitos e deveres a serem devidamente regulados de acordo com critérios de verdade, justiça e solidariedade. E não falta a reflexão sobre os desequilíbrios econômicos, o drama dos refugiados políticos e a perigosa corrida armamentista, que põem a paz em risco.

O pontífice pede que os contenciosos entre as nações sejam resolvidos de maneira dialogada e negociada, e não pela força das armas. Esse apelo, constante na voz dos romanos pontífices, também já foi feito pelo recém-eleito papa Francisco, diante dos vários conflitos em curso na atualidade.

Numa visão de futuro, antecipando-se às questões desencadeadas de maneira mais aguda pela globalização, João XXIII tratou das relações dos indivíduos e das comunidades políticas com a comunidade mundial: "Atualmente, nenhuma comunidade política está em condições de assegurar seus próprios interesses e de se desenvolver fechando-se em si mesma, pois o nível de sua prosperidade e o do seu desenvolvimento são um reflexo e um componente do grau de prosperidade e desenvolvimento de todas as outras comunidades políticas" (n. 43). A crise econômica atual, persistente e preocupante, sobretudo na Europa, confirma plenamente essas afirmações.

Em vista dessa interdependência das comunidades políticas, o papa aponta a necessidade de se constituírem "poderes públicos mundiais", competentes para zelarem pelo bem comum da inteira comunidade humana. Essa preocupação do papa, como da Doutrina Social da Igreja, em geral, parte dos laços comuns que unem todos os membros da família humana, da solidariedade universal daí decorrente e da necessária superação da busca particularista do bem dos povos.

Por isso João XXIII já constatava a insuficiência da organização tradicional da autoridade política, incapaz de assegurar o bem comum universal. A Organização das Nações Unidas, criada em 1948, ainda era jovem, mas já se mostrava impotente para assegurar a paz e o desenvolvimento humano integral dos povos. "O bem comum universal defronta-se agora com problemas de dimensões mundiais, que não podem ser resolvidos adequadamente, a não ser por poderes públicos que tenham amplidão, estrutura e meios com as mesmas proporções; esses deveriam ser capazes de agir de modo eficiente no plano mundial. Portanto, a própria ordem moral requer que tais poderes sejam instituídos" (n. 45).

Hoje se tem percepção mais clara da urgência de uma reforma da ONU e de outros organismos internacionais, que se mostram ineficientes ou até incapazes de cumprir seus objetivos; tendo sido pensados para um contexto histórico do passado, eles já não dão conta das situações novas, que marcam o mundo sempre mais globalizado.

Desse descompasso se aproveitam, não raro, organizações danosas ao bem comum, como as redes do crime organizado, a corrupção ou os crimes financeiros. Nos diversos países, a violência difusa, que fere a paz e tem dimensões preocupantes também no Brasil, está relacionada, muitas vezes, com a globalização da criminalidade; nenhum governo local conseguirá controlar sozinho esse fenômeno, mas é necessária uma conjugação global de esforços.

E o papa conclui: "Cabe a todos os homens de boa vontade a tarefa imensa de recompor as relações da convivência na verdade, na justiça, no amor e na liberdade: entre as pessoas, os cidadãos e as respectivas comunidades políticas...". (n. 59). Tarefa sempre atual.

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