quarta-feira, maio 15, 2013

Mamãe - ROBERTO DaMATTA

O GLOBO - 15/05

O Dia das Mães passa e as mães ficam. Na boa ou má memória, como seres ausentes ou presentes. As provetas podem produzir bebês, mas só a maternidade constrói seres humanos dotados de capacidade para transitar entre afetos, angústias e amor — essa coisa propositadamente desmedida.

Não há mãe sem classificação porque todos têm mãe, como se diz aqui no Brasil. E quem tem mãe tem um mínimo de humanidade porque, conforme aprendi na escola, antes de ter lido Câmara Cascudo e de ser um estudante de sistemas de parentesco, a "mãe" é uma entidade interditada. Trata-se de termo sagrado que não pode ser invocado por qualquer pessoa ou em qualquer lugar sob pena de reação imprevisível.

Sonhei com um encontro com mamãe, confidenciou-me nesse último domingo, Dia das Mães, o meu lado mais problemático para o meu lado sem nenhum problema. Essas direitas e esquerdas que alguns ainda carregam dentro de si. E como foi? Um lado perguntou ao outro.

— No sonho, ela surgia bonita e com a fragrância de Leite de Rosas, seu perfume favorito. Abraçou-me com a intensidade do tempo que nos separava desde a sua morte e me beijou no rosto. A mão que tocava o piano deslizou pelo meu rosto aparando minhas lágrimas. Então nós nos olhamos como dois velhos. A idade subtraía a distância que nos fez filho e mãe, mãe e filho.

— Mamãe, mamãe, mamãe...

Eu soluçava com o alvoroço alegre dos que sabem que o milagre é veloz. E mamãe me confortava com o sereno carinho das mães — com aquele afago que prenuncia todos os afetos a serem posteriormente vividos ou suprimidos.

— Que luta essa sua, não?

— Verdade, mas todas as portas têm dois lados — respondi.

Ela me deu um abraço concluído. Abraço de regaço e colo que nós, homens, estamos sempre à procura.

— Eu vejo todos vocês mesmo neste mundo sem tempo ou espaço onde estou. Mas foi o seu chamado que me ressuscitou. Foi o poder da narrativa nascida no seu coração que me deu vida.

“Palavras, palavras, palavras...”, repetia o meu lado que havia lido Shakespeare.

Não me lembro de minha mãe comendo. Tenho a memória de papai sendo servido em primeiro lugar e apreciando a nossa boa e farta comida. De mamãe só tenho a recordação da mulher em volta da mesa, servindo a cada um de nós com precisão, cuidado e carinho

A mais grata memória de minha mãe surge com a música do seu piano. Vejo meu pai mudo e feliz, sentado na velha cadeira de balanço e vejo as mãos certeiras de mamãe atacando as teclas do piano e produzindo o milagre dessa arte que se faz se fazendo a si mesma no momento em que é feita. A melodia enchendo a sala modesta e renovando o encantamento pelo mundo que tem muito de péssimo mas é sempre redimido pela música. Essa música que se concretiza de modo diferente cada vez que é "tocada" ou "cantada".

Minha mãe, Maria de Lourdes Perdigão da Matta (Lulita), era filha de uma viúva cujo marido, Carlos da Silva Perdigão, foi assassinado no bar A Phenix de uma Manaus de teatro e sorvetes, numa trágica tarde de 24 de setembro de 1908. Morto por dois tiros de um revólver Galand, deixou minha avó, Emerentina de Azevedo Perdigão, com dois meninos e uma menina. Emerentina superou a desgraça ao encontrar numa outra tarde um magistrado baiano chamado Raul Augusto da Matta, pai de um menino e de uma menina.

Esse encontro acabou num casamento de viúvos com filhos que logo confirmaram sua felicidade tendo outros filhos. Seis filhos desse novo casamento dos quais a morte levou a metade — dois quando crianças, os outros, um jovem e dois adultos. Vovó dizia que sua sina era enterrar filhos e eu mesmo a acompanhei quando ela perdeu seu filho mais velho em nossa casa aqui em Niterói.

Mas para Raul e Emerentina o mais difícil de lidar não foram essas mortes todas (afinal todos morremos), mas o amor inesperado nascido entre Renato, o filho mais velho do viúvo, e de Lulita, a filha mais nova da viúva Emerentina, esses que foram meus amados pais.

— Como foi esse casamento entre vocês, irmãos de criação? — tive a liberdade de perguntar no sonho.

— Maravilhoso — disse mamãe, receosa de ser invejada pelos anjos. — Era um paraíso essa intimidade com um meio-irmão que virou namorado e marido. Nessa relação, o "impossível" e o "proibido" se entenderam e eu recebia o máximo da endogamia cujo limite é o incesto, ao lado daquele percentual mínimo de risco da exogamia que, levada ao extremo, como vocês antropologistas sabem muito bem, conduz à guerra. No meu caso feliz — continuou mamãe — quem deu minha mão a seu pai foi o meu amado padrasto, o pai do seu pai; e quem abençoava meu matrimônio foi a sogra postiça que era, ao mesmo tempo, minha mãe, sua amada avô Emerentina. Essa fusão de afinidade com consanguinidade era a felicidade plena: meus cunhados foram meus irmãos. Foi o dia mais feliz da minha vida! Só tive dias iguais quando você, seus quatro irmãos e sua irmã nasceram — terminou ela, desaparecendo depois de me abraçar longamente e exorcizar as minhas angústias.

Quando esse meu lado terminou a fantasia do sonho, o outro lado, aquele sem nenhum problema, acordou e, incontido, falou alto quase aos berros: mãe é mãe!

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