O GLOBO - 02/04
A nova lei do emprego doméstico é uma grande oportunidade de mudanças. Não será fácil nem indolor, mas terá profundas repercussões sociais, econômicas, comportamentais, familiares. Demandará muito de todos nós, imporá exigências às políticas públicas. É progresso. Chegou em um momento em que as domésticas podem escolher onde trabalhar.
O número de trabalhadores no emprego doméstico tem caído, e a renda tem aumentado. Sinal de que há mais demanda que oferta dessa mão de obra e novas oportunidades no mercado de trabalho.
Ficará mais caro ter empregado doméstico, mas é um avanço natural. Dar os mesmos direitos a todos os trabalhadores é progresso. Quer que a pessoa trabalhe até mais tarde num dia em que receberá amigos para jantar? Perfeito, a funcionária será paga por hora extra. Quer romper o contrato de trabalho? Perfeito, ela terá o mesmo direito que todos os trabalhadores do mercado formal.
Há uma burocracia infernal no mercado de trabalho. Ótima hora para o governo simplificar. Nas casas, isso é mais urgente porque não há contador. O governo poderia simplificar também a parafernália regulatória para a pessoa jurídica.
Novas oportunidades se abrem em todas as áreas. A família que tem duas empregadas, ou mantém a funcionária em horas excessivas, terá agora de exigir colaboração de todo o grupo familiar.
A revista "Época" fez, há uma semana, uma reportagem sobre "o que as mulheres querem dos homens". No texto sobre a nova divisão de tarefas, o subtítulo é "os homens nunca ajudaram tanto nos afazeres domésticos e no cuidado com os filhos". Na legenda: "Os homens se sentem mais à vontade para ajudar no cuidado com os filhos." Na segunda legenda: "Ele ajuda tanto nas tarefas domésticas que o casal dispensou a empregada." O que me espantou foi a insistência no verbo errado. Quis escrever uma carta para a publicação:
"Querida revista Época, como leitora, assinante e admiradora da publicação, gostaria de lembrar que "ajudar" pressupõe que a obrigação - no cuidado da casa e dos filhos - é da mulher. Isso não faz mais sentido. Portanto, sugiro que da próxima vez que fizerem reportagem tão interessante esqueçam o verbo "ajudar" se forem falar da divisão do trabalho entre pessoas que têm responsabilidades iguais."
Crianças mimadas que crescem gritando que a empregada lhes dê tudo na mão, como se inválidas fossem, ou que não sabem manter o mínimo de ordem em seus espaços, terão que mudar os hábitos. A funcionária terá menos tempo, pois terá que se dedicar às questões essenciais.
As políticas públicas terão que aumentar a oferta de creches ou escolas em horário integral. Antes, isso era uma aflição das domésticas. Elas também são mães e precisam deixar seus filhos. Agora, a classe média exigirá creches.
A expressão "ela virou uma pessoa da família" não precisará ser abolida, mas não será mais a desculpa para uma relação ambígua em que não são respeitadas as exigências de remuneração extra para o trabalho extra. Favores, presentes, pequenas concessões não substituem direitos, garantia e remuneração.
Essa lei é o umbral da modernização há muito tempo necessária na cena brasileira. O governo terá de simplificar regras burocráticas. As famílias terão que formalizar relações que hoje são pouco claras. Os maridos trocarão o verbo ajudar por dividir e compartilhar. As crianças terão que ser menos exigentes. As empresas terão que ter políticas corporativas mais flexíveis para que trabalhadores de ambos os sexos possam compatibilizar o cuidado com os filhos e a carreira. Não vai ser fácil para ninguém, mas o Brasil será mais moderno.
Brilhante, como sempre!
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