sábado, abril 27, 2013

O oitavo pecado - ARNALDO BLOCH

O GLOBO - 27/04

‘Cada um corre o risco de ser chato. (...) O chato puro, contudo, não aceita zonas cinzas: diante dele, nenhuma unanimidade é burra’


A ideia de que a chatice é o maior dos pecados faz parte do arsenal de Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, um dos maiores e mais divertidos pensadores da cultura carioca.

Embora espirituosa, a máxima de Stanislaw não é peça de humor, mas uma denúncia: tida habitualmente como um mal circunstancial, necessário, “leve”, a chatice na realidade é a pior das perversões. O oitavo pecado capital.

A chatice corrói e corrompe as relações. Consome tempo incalculável de vida, exaurindo corpo e alma. Inibe o gozo e produz tédio, melancolia e depressão nas almas educadas que deixam germinar sua semente.

Já nas almas aguerridas que cismam em reagir, a chatice causa acessos de fúria assassina ou perda das faculdades da razão, o que em nada ajuda a causa da résistance.

O equívoco, talvez até a cegueira, na guerra dos chateados contra a chatice é crer que o chato é, sempre, inocente. Ele pode ser culpado de seus atos e por eles ser condenado, mas jamais irá em cana. O chato escapa do paredón pois a culpa, em última análise, é da chatice, faculdade transcendental.

É aí que está o erro. Ao considerar-se o chato um indivíduo inimputável, abrem-se as comportas para que os mais conscientes usem o poder da chatice como um meio para fins muito mais graves que o ato simples e isolado de aporrinhar o próximo.

Em outras palavras, o chato mal-intencionado está livre para destruir a comunhão entre iguais. Ele interrompe encontros harmoniosos, estraga festas, inibe gozos, corta climas, desvia assuntos e espalha argumentos nos quais nem acredita só com o intento de desorientar pensamentos que procuram convergir, levando-os de volta às trevas.

Cada um corre o risco de ser chato ao olho subjetivo do outro. O chato puro, contudo, não comporta zonas cinzas: diante dele, nenhuma unanimidade é burra.

Da teoria à prática

Semanas atrás, estacionei numa rua em Laranjeiras, onde tenho aulas de piano. A rua é confusa, mão dupla, carros parados, atropelamentos de motocicleta. Pus-me no que acreditava ser uma vaga: meio-fio alto e espaço entre dois carros.

Uma hora depois voltei cantarolando e instalei-me na poltrona.

Girei o pescoço para o lado direito e lá estava ele, debruçado no vidro.

— O senhor sabe onde está parado?

— Como assim?

— Olhe bem onde o senhor está parado.

Olhei bem e vi um portão sem número, de cor parecida com a do muro, muito difícil de identificar como garagem, ainda mais com o meio-fio de meio metro, sem rampas. Mas não quis discutir. Esqueci os argumentos atenuantes e parti para o perdão.

— Desculpe. Eu realmente não percebi.

Ele não deu sinal de reconhecimento.

— Mas como é que o senhor faz isso? Jura que não viu mesmo? Ocupou minha garagem por uma hora.

— Juro que não vi. Estava realmente um pouco distraído, o meio-fio é alto, o portão indefinido, desta vez falhei mesmo.

Minha humildade era vã.

— O senhor devia ver isso. O senhor deve ser mesmo muito distraído. Como é que pode?

— É verdade. Sinto muito. Vou ver isso. O senhor teve algum dano? Precisou sair com o carro neste meio-tempo?

— Não. Mas isso não vem em absoluto ao caso. Não é desculpa.

— Não, não é desculpa. Fiquei preocupado que o senhor tenha tido um prejuízo maior com a minha infração.

— A sua infração foi devidamente anotada e comunicada.

— Ah, sim, o senhor ligou para as autoridades. Claro que sim.

— Sim, eles vieram e anotaram.

— Obrigado por avisar, vou ficar de olho no correio. O senhor fez o que devia fazer. Como dizem os filmes americanos, o senhor fez a coisa certa. Obrigado.

— E o senhor fez a coisa errada.

— Sim, indiscutivelmente. Agora, se o senhor me permite, eu vou indo, tenho um compromisso, não posso fazer mais nada para minimizar o seu sofrimento e o meu.

Ele ficou parado, pasmo ainda, diante da janela enquanto eu manobrava.

Estava visivelmente inconformado.

Eu poderia ter dado melhor troco. Perguntado o que essa criatura faz na vida.

Há quanto tempo não tem um intercurso ou um sorriso em sua vida.

Poderia ter informado que de almas como a dele nascem os grandes dedos-duros de pequenos delitos, os carrascos de ladrões de maçã, as polícias do pensamento, os torturadores, os príncipes da intolerância e os fascismos de todas as cores.

Aquele homem era, sem dúvida, um objeto de estudo de costumes, um herói pós-balzaquiano da decadência humana.

Omisso ou não, escolhi poupá-lo de maior punição por seus vis pecados. E voltaram a ocupar minha mente os exercícios de piano.

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