segunda-feira, abril 22, 2013

O fascínio de uma câmera analógica - LULI RADFAHRER

FOLHA DE SP - 22/04

A evolução é muito mais complexa e sutil do que propõem os que vendem a eficiência dos processos


Minha sobrinha Duda é a artista da família em sua geração. Não se sabe de onde a mocinha tirou tanto talento. Sua criatividade não se dá tanto pelo que produz --é uma criança, afinal--, mas por sua forma de questionar e analisar o mundo em volta. É comum vê-la observando distraidamente um formigueiro ou brincando por horas com uma pilha de elásticos.

Para seu aniversário de dez anos, eu queria dar um presente marcante. Nada de vestidinhos ou bonecas ou gadgets eletrônicos. Ela merecia uma ferramenta com que pudesse exercitar sua veia artística. Depois de muita pesquisa, decidi presenteá-la com uma câmera. Analógica. Manual. Uma daquelas chamadas de "antigas" por aqueles também rotulados com esse termo. Uma clássica Olympus Pen, sem baterias ou controles, vazando um pouco de luz, verdadeiro tesouro "hipster" que encontrei abandonado no fundo do armário.

Devidamente limpa, equipada e embalada, ela estava pronta para ser entregue. Faltava, no entanto, uma explicação. Por mais que digam que "criança não liga para essas coisas", a passagem da primeira década é uma ocasião importante. Nessa sociedade mercantilista, um presente "velho" pareceria falta de consideração. Ele precisava ser bem apresentado.

Pensando na situação, lembrei-me da frase do pioneiro da computação Alan Kay: "Tecnologia é tudo o que for inventado depois de você nascer". Cidadã do século 21, Duda dificilmente se interessaria por argumentos históricos ou analógicos. O fato de ter sido uma tecnologia fascinante quando eu tinha a idade dela tampouco teria apelo.

Recorri, então, às artes plásticas. O que ela tinha em mãos não era uma câmera, mas um instrumento de arte, capaz de gerar peças únicas, originais, frágeis e perecíveis. Não servia para registrar qualquer momento ou situação, mas para colecionar impressões. Acima de tudo, sua operação demandava uma grandeza rara hoje em dia: tempo.

Em um filme não cabiam infinitas fotos, por isso era preciso tempo para planejá-las. O material exposto precisaria ser revelado, e isso também demandava tempo. Sua câmera digital, em um velho smartphone, prepararia os rascunhos antes da foto definitiva na "velha" maquininha, que apresentava como vantagens todas as características que há alguns anos a tornaram obsoleta.

O filme fotográfico em preto e branco era outra preciosidade. Multifuncional, servia para a captura e o armazenamento das imagens. Sua estrutura e finalidade poderiam ser mudadas infinitamente, bastava ter uma caixa preta e um buraco. Achei melhor não contar que as imagens dos negativos eram projetadas em papéis virgens e banhadas em soluções químicas --e não impressas-- para não confundi-la. O choque da novidade já tinha sido grande.

Ao ver o fascínio da mocinha frente a um tipo de câmera que todos um dia chamaram de velha entendi a paixão causada por Polaroids e linotipos, que podem ser desmontados ou repropositados de infinitas formas. A evolução é muito mais complexa e sutil do que propõem os que vendem a eficiência dos processos.

Queria usar uma foto dela para ilustrar a coluna, mas infelizmente o filme não foi revelado a tempo de entrar na composição do jornal impresso. Nem tudo é vantagem no mundo analógico.

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