segunda-feira, fevereiro 04, 2013

Tragédia pastelão - LÚCIA GUIMARÃES

O Estado de S.Paulo - 04/02


Um bunker subterrâneo abriga, no começo do fim de semana, enquanto escrevo, um menino de 5 anos que chora pelos pais. O bunker foi construído por Jimmy Lee Dykes, de 65 anos, conhecido num município rural do Alabama por se trancar lá dentro por vários dias. Tem eletricidade, comida e TV. Por um tubo de ventilação, a policia passou remédios para o menino refém, que sofre de autismo. O garoto foi arrancado por Dykes do ônibus escolar, depois que seu captor executou o motorista do ônibus que se havia se recusado a entregar dois outros meninos.

O captor armado é possivelmente doente mental. Mas, na narrativa fronteiriça americana, pode se passar por um excêntrico com temperamento violento, exercitando seus direitos fantasiosos sob a segunda emenda da Constituição. Ele estava intimado a comparecer a um tribunal depois de ter feito disparos contra uma vizinha, o filho e o neto da mulher, aborrecido com uma disputa por um quebra-molas na estrada de terra batida onde vive.

Um repórter nova-iorquino gravou uma assembleia no Norte do Estado, em que um xerife de fato tentava explicar a proprietários de armas como cumprir a lei recém-passada pelo governador Andrew Cuomo, como reação ao massacre de Newtown. Caçadores de cervos, convencidos de que precisam de suas armas automáticas e centenas de rodadas de munição para capturar o jantar, prometem uma insurreição e desafiaram o xerife a vir prendê-los. O xerife estava assustado e tentava apaziguar os candidatos a delinquentes que se enrolam na bandeira para justificar seu radicalismo.

Como um vespeiro perturbado, não por um passante desavisado, mas pelo resultado da eleição de novembro, figuras como Jimmy Lee Dykes e os caçadores de Nova York estão zunindo em vários Estados, brandindo suas armas, sejam as de fogo ou as retóricas, as que servem de munição para o delírio paranoico que é parte da sustentação do lobby das armas, a NRA. Ao assinar ordens executivas para regular o porte de armas e reduzir o arsenal militar em mãos de cidadãos privados, Obama deu um presente aos mercadores da paranoia.

O porta-voz da NRA, Wayne LaPierre, foi depor numa comissão do Senado sobre armas de fogo, motivada pelo massacre da escola de Newtown, Connecticut, em dezembro. Chegou cercado por capangas que não se contentaram em empurrar repórteres. Revistaram alguns deles, em flagrante violação das regras da casa dos representantes do povo. A paranoia de LaPierre é justificada. A julgar por seu depoimento, ele teme ser atingido por um projétil de raciocínio coerente. E como não temer? Trata-se de um sujeito que formula cenário em que os cidadãos, abandonados pelo governo, "quando um furacão ou tornado chega", só podem "se proteger no frio e na escuridão" com suas armas. Logo, logo, a moça do tempo vai recomendar o calibre ideal, em caso de ventania.

Não é difícil fazer de LaPierre objeto de chacota, como provaram os comediantes de fim de noite durante a semana. Mas o que fazer do infinitamente mais articulado e brilhante David Mamet? Não precisa ajustar seus óculos, você leu o nome correto. O dramaturgo que eletrizou plateias em tantos países, inovando o diálogo teatral com jóias como "Glengarry Glenn Ross", uma condenação da cultura do comércio amoral, se orgulha, recentemente, de pertencer ao coro que ele chama de conservador.

Mas não posso insultar os conservadores que conquistaram o epíteto por métodos mais nobres. O direitismo expressado por Mamet é como um tique nervoso. Não é neoconservador, é neolunático. Vejamos: numa longa diatribe contra a iniciativa de Obama, publicada com destaque lamentável pela Newsweek, Mamet começa por explicar ao seu rebanho que a máxima de Karl Mark "De cada um, de acordo com suas habilidades, a cada um, de acordo com suas necessidades" nada mais é do que linguagem em código para a função do Estado, de tomar e distribuir como melhor lhe parecer. Levaria nota baixa em marxismo, porque o espantalho invocado por Mamet estava pensando numa utopia do proletariado, não do Estado. O dramaturgo segue com o argumento canastrão, que não haveria de tolerar, partindo de seus melhores personagens: Obama quer proteger sua família com o Serviço Secreto, mas não quer deixar o xerife Mamet se armar para proteger seus rebentos. Aqui, detectamos o odor inconfundível de outro código de linguagem: qualquer obstáculo ao hiperindividualismo de John Wayne é elitista.

Há elitismo maior do que se conceder o privilégio de mentir?

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