domingo, fevereiro 03, 2013

O redemoinho - CAETANO VELOSO

O GLOBO - 03/02

Godard disse, numa entrevista pouco feliz, que você pode amar pessoas que gostem de livros ou músicas, quadros ou edifícios diferentes daqueles de que você próprio gosta, mas que é impossível amar alguém que gosta de filmes que você desaprova


Nunca recebi tantos comentários de leitores desta coluna (pelo visto são mais do que 17) como quando saiu o artigo em que falei do “Redemoinho”, o vídeo doméstico que me pareceu maravilhoso no YouTube. De um desembargador que eu não conheço a um diretor de filmes experimentais de quem sou amigo, recebi, através do GLOBO ou diretamente em meu box de e-mail, várias observações (quase todas desaprovando meu entusiasmo). Uma amiga queridíssima me disse (não usando essas palavras) que toda aquela beleza estava em meus olhos. Um amigo não menos querido (e unido a ela) reconhecia (com minúcias de observação pictórica que eu próprio não cheguei a ressaltar) muitas das virtudes a que eu me referira, mas deixando claro que o meu texto é que o tinha levado a chegar a valorizar coisas que o vídeo por si só não teria a força de impor (isso num tom semelhante ao da sua companheira, em que um “ah, Caetano…” parecia me alertar para o fato de que eu viajara demais num vídeo sem tanta substância). Esse amigo é muito inteligente e muito articulado, de modo que conseguiu escrever elogios ao filmeco que eram até mais bem desenvolvidos do que os meus — ao mesmo tempo em que quase me repreendia por ter supervalorizado algo que poderia passar despercebido.

Godard disse, numa entrevista pouco feliz, que você pode amar pessoas que gostem de livros ou músicas, quadros ou edifícios diferentes daqueles de que você próprio gosta, mas que é impossível amar alguém que gosta de filmes que você desaprova. Maluquice de cinemaníaco. (Numa outra entrevista, encontrei-me profundamente com ele no culto a “The brown bunny” : ele — diferentemente de críticos profissionais e amadores — ficou tão encantado quanto eu com esse filme de Vincent Gallo.) Pois bem, em meio a tantas demonstrações de desconfiança e desconforto relativos a meu ardor por esse acidental curta goiano, um jovem amigo me indicou dois outros vídeos, dizendo que um deles (“Mulher cagando na praia e homem morre”) era seu favorito absoluto no YouTube. Respondi a sério e ele me gozou com carinho na tréplica. Onde vinha a segunda indicação: um vídeo de um americano — numa daquelas paisagens monumentais dos Estados Unidos, que parecem fazer desse país realmente um lugar predestinado a dominar o imaginário mundial — mostrando um duplo arco-íris e gritando em gozo místico perto da câmera: “Deus, oh Deus, o que é isto?”. Respondi que fiquei perdido no curtíssima da praia com escatologia (a baixa resolução da imagem dá charme à população da praia, mas não me deixa ver se a mulher está de fato fazendo o que o título brada — e o homem parece trazido morto por uma onda: não o vemos morrer, como o título também anuncia), e que achei a altíssima resolução do filminho americano muito impressionante mas que, até onde eu sei, todo arco-íris é duplo. Em suma, parecia que eu e meu querido garoto estávamos brigando.

Algo semelhante aconteceu com o diretor de filmes experimentais (excelentes). Como o jovem, ele não opinou diretamente sobre “O redemoinho”, apenas me chamou a atenção para filmes a que eu já deveria ter assistido. Mas quando respondi, ele expressou incredulidade quanto à naiveté da pecinha goiana. Bem, para mim, o tom de demagogia religiosa da mãe é ilustrativo do tom adotado pelos milhões de brasileiros convertidos a igrejas pentecostais. E, tal como aparece no vídeo, é um comentário involuntário sobre esse tom. Uma sua defesa efetiva, não um julgamento com desprezo e condescendência. A pose da namorada também é a pose que as moças fazem ao se saberem filmadas. No mais, tudo é acidental e surpreendente, para os partícipes como para os espectadores.

Por que estou discutindo de público até mensagens que me chegaram por caminhos privados? Porque continuo crendo que o vídeo do redemoinho é belo, didático e relevante. E acho igualmente significativo que tantos tenham querido se dirigir a mim desqualificando-o. Regina Casé, que foi quem me alertou para sua existência, contou-me que também com ela se dá algo assim: as pessoas a quem ela o mostra acham que ela vê nele mais do que de fato há. Tenho muita identificação com Regina, mas não precisaria do entusiasmo dela para amar esse vídeo. O interessante é que, ao me referir a ele aqui, falei em “O som ao redor”. Mas eu ainda não tinha visto o assombroso filme de Kleber Mendonça Filho. Citei-o de ouvir falar. Pois Regina foi vê-lo e me disse que parecia que ela estava vendo “Trate-me leão”, de tão seu lhe pareceu o filme. Ela não sabia que eu tinha pensado justo nessa peça ao ver “O som”. Este é um passo imenso na história da feitura de filmes no Brasil. O goianinho é um milagre inocente.

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