O GLOBO - 23/02
Brasileiros sectários, supostamente em defesa de Cuba, provocam uma reação que só faz prejudicar o projeto de abertura daquele país
Não é muito fácil, para uma pessoa da minha idade, falar sobre Cuba. Para minha geração, Cuba foi um modelo de sonho, esperança de um inédito socialismo democrático, com liberdades individuais, direitos e oportunidades iguais para todos, liderado por rapazes como nós, com menos de 30 anos de idade, num país miscigenado como o nosso, ao som de rumba, mambo e bolero.
Nada poderia nos produzir mais euforia que a noite de Ano Novo em que Fidel Castro entrou em Havana e tomou o poder com seus guerrilheiros barbudos. Eu tinha 18 anos e estava nas ruas, com meus colegas da UNE e os companheiros do futuro Cinema Novo, celebrando a vitória da beleza e da justiça, como diria Paulo Martins em “Terra em transe”. Isso ninguém esquece. Mesmo que o sonho se transforme em pesadelo, permanece em nossos corações na sua forma original.
Nossa proximidade afetiva e cultural com o cinema cubano alimentou, durante anos, nossa tolerância com o que de errado víamos acontecer na ilha. Os cineastas brasileiros sempre tiveram a absoluta solidariedade dos cineastas cubanos liderados por Alfredo Guevara, Tomás Gutierrez Aléa e Julio Garcia Espinoza. Nos piores momentos da ditadura militar no Brasil, nunca nos faltaram moralmente (apoiando nossos filmes e nossos projetos cinematográficos) e materialmente (recebendo alguns de nós em exílio ou na escola de cinema de San Antonio), sem nada em troca.
Mas, ao longo do tempo, foi ficando desconfortável defender Cuba. Era como se a mulher amada estivesse fugindo com outro, a dor de corno reprime o amor.
A agressão na Baía dos Porcos, a desumanidade do embargo comercial, a barbárie de Guantánamo, o terrorismo de estado (vejam “A hora mais escura”, de Kathryn Bigelow), os cubanos presos em Miami, todos os erros e crimes da política externa americana não podem justificar o silêncio diante da falta de liberdade, do controle da vida dos cidadãos, da perseguição aos homossexuais, das misérias da ditadura de Fidel Castro. Não quero viver num mundo em que seja obrigado a escolher entre dois males. Prefiro continuar sonhando.
Em dado momento, a União Soviética se ocupou de Cuba, garantindo sua sobrevivência ao embargo. Com isso, o regime pôde investir correta e fartamente em educação e saúde, com resultados gloriosos. Mas de que serve ser alfabetizado se não posso ler o que bem entender? De que serve estar fisicamente bem se não posso levar meu corpo para onde bem quiser?
Quando a União Soviética desmoronou, deixando Cuba à deriva, o regime cubano tentou resistir por sua própria conta e o resultado foi um período de extrema miséria, cujas consequências eram o desejo de fuga em massa da população e o endurecimento do regime para conter o desagrado geral. Aí começou a história de Yoani Sánchez.
Embora não seja nenhum Hermano Viana (um dos meus heróis do pensamento contemporâneo), uso a web com alguma frequência. Mas não tenho muita paciência, concentração e habilidade para estar acessando os muitos blogs interessantes ou que poderiam vir a me interessar. Não é que eu subestime a tecnologia, a tecnologia é que me superestima.
Assim, nunca li uma só linha do blog de Yoani Sánchez, o Generácion Y. Mas, independentemente do que pudesse achar dele e dela, todos devem ter o direito de se manifestar pacificamente, em qualquer país ou circunstância, mesmo que sejam agentes do demônio (em Cuba, agentes da CIA são presos ou talvez fuzilados, não é provável que recebam passaporte). Essa é aliás uma grande contribuição da internet à civilização — ser quase incontrolável.
Aí a moça vem ao Brasil e é recebida a pedra e pau. Como relataram os jornais, as TVs e o próprio senador Eduardo Suplicy, puxaram-lhe os cabelos, jogaram-lhe objetos, bloquearam sua locomoção, impediram que se projetasse o filme de Dado Galvão em que ela aparece (nem sei direito do que trata o filme, mas é uma pena que nossas associações de classe cinematográfica não se tenham manifestado a propósito dessa censura informal e selvagem contra um cineasta brasileiro).
Os manifestantes, que também têm o direito de dizer o que quiserem, preferiram fazê-lo a cassetete, lembrando vulgares policiais da repressão. Como disse o senador Suplicy, deviam ter tido mais coragem de ouvir.
É evidente que a autorização do governo cubano para que Yoani Sánchez viajasse, depois de suas 20 tentativas fracassadas, é sinal de um processo de abertura política gradual e de lenta transformação econômica. Estranho é que brasileiros sectários, supostamente em defesa de Cuba, provoquem uma reação que só faz prejudicar esse projeto de novos rumos no horizonte político do país.
Impedir pela força que a blogueira se manifeste, pondo em risco sua integridade física, não é só inaceitável gesto de intolerância, como também um golpe traiçoeiro nesse projeto de reaproximação de Cuba com a democracia, em convivência com o resto do mundo. É isso o que deviam desejar aqueles que ainda têm Cuba no coração.
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