sábado, fevereiro 02, 2013

Cultura da irresponsabilidade - ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

O GLOBO - 02/02

Se a tragédia de Santa Maria não nos convencer de uma vez por todas que a irresponsabilidade é assassina, preparemo-nos para mais dor e desespero



A dor não cabe nas três letras de uma palavra. A dor é indizível e só cada um conhece a sua. A dor alheia se respeita no silencio e na compaixão.

A revolta, ela sim, comporta muitas palavras e outros tantos gestos que não devem ser poupados. Do que aconteceu em Santa Maria se deve falar à exaustão, discutir em cada sala de jantar, escola, em cada gabinete, da Presidente aos prefeitos, até que se chegue às raízes da tragédia. Não apenas procurar os responsáveis e puni-los mas também combater os irresponsáveis, desentranhar de nossa maneira de viver comportamentos aberrantes que, tidos como normais, cedo ou tarde desembocam em desastre. Porque o que está em causa não é só a responsabilidade específica, localizada em Santa Maria, mas a irresponsabilidade invisível porem generalizada que alimenta no país uma cultura assassina.

De onde vem o desprezo pela lei, a ojeriza à ordem? Por que no Brasil as leis não pegam e as normas não se cumprem? Por que achamos tanta graça na transgressão? Quando um elevador está superlotado, alguém grita, "entra, que sempre cabe mais um!". E, no entanto, a lotação máxima está à vista de todos. Se alguém sai em sinal de protesto, ouve o comentário: besteira. Numa mistura de estupidez e leviandade, às gargalhadas, colocamos em risco a vida uns dos outros.

O desprezo pela ordem vem do fato que ninguém teme a lei, porque acredita – e não sem fundamento – que sempre se encontrará uma maneira de contorná-la, uma propina, a influencia de um amigo, o favor de um político. A história da corrupção se enreda na história da transgressão e a explica.

O divórcio entre a população e a autoridade provém de uma desconfiança ancestral de que esse jogo não é para valer. O desprezo pela política que, confundida com o poder do Estado, aumenta cada dia – e, mais uma vez, com boas razões – não é alheio a essa confiança na impunidade.

Havia superlotação na boate em Santa Maria. Como há em tantas outras, o que não a absolve, ao contrário, anuncia novos dramas. A função pública mal exercida, a exemplo de fiscais que não fiscalizam, deixa de ser respeitada. Quem confia na presença, presteza e preparo da polícia? Quem são esses seguranças que substituem as autoridades, essa praga de gigantes embrutecidos, de terno e gravata, saídos ninguém sabe de onde, imbuídos de uma autoridade espúria, dada por quem? Convivemos com eles em cada shopping, em cada restaurante, supostamente para nossa segurança. De tempos em tempos massacram um jovem que bebeu demais. Cenas banais, logo esquecidas.

Havia seguranças na boate de Santa Maria que custaram a entender o que acontecia, preocupados com as contas não pagas. Barraram a saída. Quem lhes deu esse direito?

No dia 17 de dezembro de 1983, último sábado antes do Natal, no Harrods de Londres havia crianças por toda parte já que é tradição nas famílias pobres, à guisa de presente, levar os filhos para ver o tradicional presépio com que a loja se enfeita. Uma bandinha do Exército da Salvação tocava canções natalinas quando o prédio inteiro estremeceu. O IRA escolhera esse dia para um atentado, apostando no pânico que aumentaria o poder destrutivo de um bomba que arrasou boa parte do andar térreo, fazendo oitenta vítimas.

Em minutos, a polícia chegou ao local e coordenou a retirada de milhares de pessoas espalhadas em cinco andares. Entre a explosão e a chegada da polícia, funcionários treinados para emergências já haviam começado a organizar a saída. Ninguém pôde impedir a brutalidade do atentado, mas as medidas de segurança evitaram o pânico, a correria, gente pisoteada. Essa história, ninguém me contou, eu vivi. E não esqueci.

A vida humana, entre nós, tem pouco valor. A cultura da irresponsabilidade não conhece a prevenção. Prevenir dá trabalho e tem custos. A ganância que impregna nossa sociedade nos é, a todos, letal. Uma casa noturna que acolhe cerca de mil pessoas não tinha um mísero extintor que funcionasse. Em um prédio que frequento há anos surgiram do dia para noite, em todos os andares, extintores reluzentes, o que sempre foi obrigatório, jamais cumprido. Funcionarão? Por quanto tempo?

A presidente da Republica, emocionada, afirmou que essa tragédia não pode se repetir. Tomara que use sua autoridade para colocar um freio nessa cultura que envolve, na mesma promiscuidade, agentes públicos incompetentes e gente gananciosa. Quanto a nós, se a tragédia de Santa Maria não nos convencer de uma vez por todas que a irresponsabilidade é assassina, preparemo-nos para mais dor e desespero.

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