segunda-feira, fevereiro 25, 2013

Apropriação indébita - DENIS LERRER ROSENFIELD

O GLOBO - 25/02

As campanhas em curso do desarmamento mostram o quanto a liberdade está se tornando um valor relativo em função de supostos bens maiores



A esquerda, sobretudo de orientação marxista, em suas várias vertentes, ficou completamente desorientada após a queda do Muro de Berlim e a derrocada da União soviética. Suas bandeiras e princípios foram lançados por terra, mostrando uma discrepância aterradora entre a realidade totalitária e os princípios supostamente humanistas.

Um caso interessante dessa desorientação foi a apropriação operada pela esquerda da doutrina dos direitos humanos, como se ela fosse uma coisa sua. Isto é particularmente visível no Brasil. Ora, a doutrina dos direitos humanos, no século XX, foi um instrumento dos dissidentes soviéticos e dos países do Leste Europeu para reclamar do controle totalitário e autoritário seguido por seus respectivos governos.

Clamavam eles por liberdade de expressão, de imprensa, de publicação. Lutavam pelo direito de ir e vir, que lhes era proibido. Zakharov, na extinta União Soviética, e Vaclav Havel, depois presidente da República Checa, foram símbolos importantes dessa época. Ou seja, os direitos humanos foram elaborados e usados contra os governos de esquerda, de modo a que viessem a aceitar uma liberdade necessária, de valor universal.

Nessa perspectiva, Yoani Sanchéz, dissidente cubana e colunista do Estadão, nada mais faz do que colocar-se como herdeira dessa tradição dos direitos humanos. Cuba, governo de esquerda, tão prezado por alguns setores de nosso país, é um esbirro caribenho dos governos comunistas. Por via de consequência, os defensores da ditadura dos irmãos Castro são liberticidas que desprezam profundamente os direitos humanos.

A vergonha, utilizando mesmo um termo brando, das manifestações esquerdistas, com seus respectivos apoios partidários, contra a dissidente cubana mostra o quanto certos setores da esquerda, em nosso país, continuam presos aos dogmas totalitários do século passado. Uma visitante impedida fisicamente de falar é um exemplo de como essa doutrina, que deveria ter um valor universal, é pervertida ideologicamente.

O governo brasileiro tem uma Secretaria de Direitos humanos. O mais curioso é a seleção que opera dos valores ditos universais. Se um policial morre no cumprimento do dever, o mutismo é a regra, como se não fosse algo universal. Se um invasor do MST é preso, lá vão os companheiros conclamando o respeito aos direitos humanos. Eloquente também é a omissão do governo brasileiro em relação à questão dos direitos humanos em Cuba. A contradição é flagrante.

No caso de Yoani Sanchéz, o silêncio da Secretaria de Direitos Humanos é de furar os tímpanos. Será que não há nada a ser dito? Nem uma indignação a ser externada em relação a grupos que usam da violência para impedir a liberdade de pensamento de uma digna representante dos direitos humanos?

O outro lado da apropriação se manifesta no uso que se tornou corrente do politicamente correto, como se fosse a outra face dos direitos humanos. O mais interessante aqui consiste nas restrições que operam na liberdade de escolha, como se fosse um valor que deveria ser relativizado em função de “bens” supostamente maiores.

Há setores da esquerda brasileira, do PT aos tucanos, passando pelo novo partido de Marina Silva, que importam o purismo religioso comportamental americano enquanto símbolo da nova esquerda. Os “liberals” americanos, cuja tradução correta deveria ser “trabalhistas” ou “social-democratas”, para distingui-los dos verdadeiros “liberals”, os “liberais” no sentido inglês do termo, estariam fornecendo os novos parâmetros da esquerda. Não deixa de ser interessante constatar que os discursos antiamericanos vêm acompanhados da importação da ideologia esquerdizante americana.

O politicamente correto brasileiro está importando as cotas raciais americanas, apelando para posições morais, como se a solução da miséria em nosso país passasse pela reintrodução de uma nova forma de racialismo, discriminando, em sentido inverso, as pessoas pela cor. Pior ainda, pela autodeclaração da cor, o que aumenta ainda mais o componente ideológico dessa diferenciação/discriminação. O valor universal da igualdade entre as pessoas perde-se no ralo.

Outra importação reside nas restrições à liberdade de fumar e, mesmo, por extensão as tentativas de interferência na própria produção de tabaco, produto, aliás, importante da pauta de exportação brasileira. Não se trata, evidentemente, de defender que uma pessoa tenha o direito de dar uma baforada na cara de outro, mas tão simplesmente de guardar o respeito à liberdade de escolha de cada um em lugares adequados e separados. Marina Silva chegou a considerar a indústria do tabaco como “algo sujo”, quando se trata de um setor que se caracteriza pelo desenvolvimento sustentável em sua área agrícola, cultivada por agricultores familiares.

Outro exemplo ainda é a campanha crescente que só tende a aumentar contra o consumo de álcool, alcançando proibições draconianas na direção de veículos. Beber está se tornando um ato que vem a ser identificado a um dano irremediável à saúde, podendo se traduzir, mesmo, pela morte do próximo. Estamos voltando ideologicamente à doutrina da lei seca americana, revigorada de outra maneira pelo purismo comportamental religioso.

Outra questão que se encaixa nessa “cruzada” do politicamente correto é o controle quase total da liberdade de escolha dos cidadãos, no exercício legítimo — e universal — do direito à autodefesa. As campanhas em curso do desarmamento, deixando o cidadão completamente a mercê, em um Estado incapaz de assegurar a segurança física de seus membros, mostram o quanto a liberdade está se tornando um valor relativo em função de supostos bens maiores.

Os direitos humanos, tais como foram elaborados e defendidos no século XX, inclusive pelos críticos dos governos de esquerda, apresentam posições de defesa irrestrita da liberdade de escolha em todos os seus níveis, contra as ideologias coletivistas e totalitárias.

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