terça-feira, fevereiro 26, 2013

A arte de ser "ex" - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA

A renúncia de Bento XVI trará a novidade da figura de um ex-papa em nosso mundo. Até a expressão soa estranha. Fazem parte da vida contemporânea ex-presidentes, ex-primeiros-ministros e até ex-reis (como tantos destronados ao redor do planeta ou como Edward VIII, que abdicou do trono britânico para se casar com a plebeia Wallis Simpson). A partir de 30 de abril, data para a qual a rainha Beatrix da Holanda programou sua abdicação em favor do filho, teremos mais um caso. Para encontrar um ex-papa, no entanto, só retrocedendo aos confins da Antiguidade ou da Idade Média. Ex-papas não fazem parte do repertório dos nascidos nos últimos muitos séculos.

Perguntas que se impõem: que faz um ex-papa? Conseguirá ele "desencarnar" do cargo? Sentirá saudade do tempo em que reinou? Quererá influenciar o governo do sucessor? Abrigará o secreto (ou nem tão secreto) desejo de voltar ao posto?

Bento XVI de início se encaminhará, como prometeu, a uma vida de recolhimento. Os "ex", mesmo os mais poderosos, sempre começam a nova etapa com a determinação de afastar-se o mais possível dos encargos, pompas e atributos da antiga função. Imaginemos, no entanto, como exercício de ficção, que, não tarde muito, ele se entedie da nova vida. Resolve então fundar um instituto. Dá-lhe o nome de Instituto Bento XVI e nele montará um escritório, no qual se ocupará de uma densa agenda: audiências a bispos e cardeais, bem como a leigos de diversa extração (até mesmo chefes de estado); publicação de folhetos sobre as excelências de sua administração; organização de seminários sobre os rumos da Igreja e a sorte dos povos.

As audiências por vezes serão a pessoas com interesses em favores da burocracia vaticana, o que alimentará o rumor de que o "ex" continua a exercer direta influência nos rumos da instituição. Outras vezes, serão a ocupantes de altas funções no novo pontificado, os equivalentes a ministros num governo nacional, e aí será pior: dará a impressão de que a fidelidade professada por tais auxiliares ao "ex" é maior do que a devida ao atual ocupante do cargo. Bento XVI não se abalará. Suas atividades tomarão ritmo cada vez mais intenso, e às audiências ele acrescentará as conferências, as aparições públicas, o comparecimento a cerimônias oficiais. Situação mais equívoca ocorrerá se o conclave consagrar um candidato de currículo pobre e pouco peso político, eleito graças ao aberto empenho do antecessor. Dirão que Bento XVI foi capaz de eleger "um poste", o que não desagradará ao renunciante — muito pelo contrário — e aumentará seu prestígio sobre uma cada vez mais extensa base aliada de cardeais, bispos e párocos.

A certa altura o ex-papa sentirá saudade das viagens do período do pontificado, e quererá realizar "caravanas" ao redor do mundo para manter a chama de seu legado e a continuidade da luta em favor da Igreja e da felicidade dos povos. Percorrerá então as diversas dioceses, da Europa à Oceania, da Ásia às Américas, reunindo-se nas diferentes escalas com autoridades religiosas e civis e, em cada local, rezando missas campais e falando à massa de povo. Mais do que nunca, vai-se falar de governo paralelo. O sucessor se sentirá secretamente constrangido, mas afinal é o poste, e jurará sempre que Bento XVI só ajuda, com sua experiência e sua sabedoria.

Estará sempre na pauta a possibilidade de o ex-papa voltar ao cargo. Não se trata de especulação sem sentido, dada a desenvoltura com que se lança, seja a negociações de bastidores, seja a atividades públicas. Pode um renunciante aspirar a uma reeleição? Os doutos escarafuncham o direito canônico e concluem que nada o impede. Bento XVI insiste e repete que seu exclusivo propósito é garantir um bom governo ao sucessor, isso e nada mais, mas nunca afasta com todas as letras a possibilidade de voltar. Ela fica no ar, o que muito o satisfaz; é um modo de conservá-lo no jogo, e conservar-se no jogo é o objetivo que a cada dia, desde a primeira missa, na madrugada, até a última oração da noite, dá sentido e alento a seus dias.

O leitor sabe que a ficção aqui apresentada não tem nada a ver com o que se conhece e o que se espera de Bento XVI. Ele se retirará do mundo e será um ex-papa tão inativo quanto um papa morto. Mas tem tudo a ver com a arte de ser "ex". Alguns conseguem, outros não.


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