sexta-feira, janeiro 04, 2013

Tigres, tsunamis e Deus - MICHEL LAUB

FOLHA DE SP - 04/01


Como a ideologia e a religião, a arte é uma tentativa de dar sentido à existência


A ideia de que a natureza é indiferente aos valores humanos, embora não aos seus atos, é incômoda por sua gratuidade amoral. Dois filmes em cartaz lidam com o problema de maneira distinta. O primeiro é "O Impossível", de Juan Antonio Bayona, cujo cenário é uma praia da Tailândia atingida pelo tsunami de 2004.

Baseada em fatos reais, a história acompanha a família de um executivo inglês (Ewan McGregor) e sua esposa médica (Naomi Watts) em meio à catástrofe, e não poupa a plateia de um registro detalhado do horror -cadáveres, pernas gangrenadas, o rastro de destruição física e psicológica no que um minuto antes era o paraíso na Terra.

O segundo filme é "As Aventuras de Pi", de Ang Lee, sobre um adolescente indiano (Suraj Sharma) que sobrevive a um naufrágio e passa meses num bote, acompanhado de um tigre. Inspirada no romance de Yann Martel, que por sua vez se inspirou numa novela de Moacyr Scliar, a direção evita o realismo e se entrega à fantasia do 3D. Isso está no azul do céu e do mar, no movimento das tempestades, nas baleias, suricatos, tubarões e cardumes voadores recriados digitalmente.

Está também no texto: a certa altura, o protagonista pergunta qual entre duas versões possíveis é a melhor para descrever o que lhe aconteceu. A que assistimos tem um orangotango que flutua num colchão de bananas, um riacho de água doce em meio a uma ilha encantada e momentos de afetividade com o tigre. A outra é um massacre, que no livro de Martel inclui canibalismo e um coração "muito melhor do que carne de tartaruga."

Se a escolha de Ang Lee não muda a sorte do seu náufrago -com água doce ou iguarias cardíacas, "o navio afunda, minha família morre e eu sofro"-, é um tanto mais palatável. Um fã de "O Impossível" poderia acusá-lo de atualizar uma crença ingênua, que vai do bom selvagem a "Avatar", dos três porquinhos a "Marley e Eu": é mais fácil conceber um passado idílico de comunhão com o meio ambiente, ou projetar sentimentos e parábolas éticas no que é apenas instinto animal, do que aceitar a dor, a impotência e a falta de lições a tirar de uma tragédia como a de 2004.

Ocorre que um filme é um recorte -temporal, espacial, dramático. É o que nos permite, por exemplo, entender a vida inteira de um personagem em duas horas. Uma espécie de contrato com o espectador: ele aceita a edição das imagens, que tem regras próprias de verossimilhança e poder de mobilizar emoções, e em troca ganha o aprendizado ou reconhecimento de algo (na melhor hipótese, saindo da sala de cinema diferente de como entrou).

Em "Pi", o contrato é assinado desde o primeiro minuto: sabemos que estamos diante de um cenário edulcorado, de uma trama que em vários momentos não "fecha", de um adolescente que parece maduro um pouco além da conta, mas embarcamos -literal e simbolicamente- numa aventura exterior e interior que transcende a "história de superação". Ang Lee mente para contar uma verdade, digamos assim, enquanto "O Impossível" usa acontecimentos verídicos para repetir o que já sabemos: com o registro do tsunami banalizado nas TVs e no Youtube, e a par do impacto virtuosístico de algumas cenas, a reiteração desse imaginário acaba gerando um efeito anestésico.

A ele se junta a desconfiança com os truques de Bayona. O slogan do filme diz que "nada é mais forte que o espírito humano", mas o que vemos na tela -personagens que escapam por pura sorte de ondas e de infecções- sinaliza o contrário. A parte que nos cabe no contrato, uma angústia manipulada por desencontros, coincidências e trilha sonora editorial, serve apenas para realçar uma catarse de sentimentos previsíveis.

Como a ideologia e a religião, a arte é uma tentativa de dar sentido à existência, com a particularidade de que o sentido pode apontar para o caos. "O Impossível" sabe que é o caso num tsunami, mas não tem coragem de bancar sua aposta. "A Vida de Pi" finge não saber no de um naufrágio, e chega a se apresentar como história que prova a existência de Deus, mas se termina de assisti-la com uma impressão ambígua a respeito -depois de percorrer um caminho generoso de empatia e beleza.

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