terça-feira, janeiro 29, 2013

O horror de Santa Maria - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 29/01


A maior catástrofe já ocorrida numa casa de espetáculos no Brasil foi o incêndio criminoso que matou 503 pessoas em um circo de Niterói, em dezembro de 1961. A segunda maior - o fogo que irrompeu na madrugada de domingo na boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul - deixou pelo menos 233 mortos e uma centena de feridos. Queimaduras e sequelas em sobreviventes, como a chamada "pneumonia química", resultado da inalação de fumaça, poderão elevar o número de vítimas. Ninguém premeditou a nova tragédia. Mas a intenção de matar foi só o que faltou na receita que a tornou inevitável. Cerca de mil jovens se divertiam ao som da banda gaúcha Gurizada Fandangueira, superlotando um ambiente em que só havia uma porta de entrada e saída com não mais de 4 metros de largura (decerto para impedir o ingresso de penetras) e nenhuma indicação de como alcançá-la em caso de emergência. Tampouco havia janelas. A noitada se destinava a arrecadar dinheiro para festas de formatura da Universidade Federal da cidade (UFSM), o mais importante polo acadêmico do Sul do País, com 27 mil estudantes.

Quando o vocalista do grupo acendeu um sinalizador de efeito pirotécnico, como se costuma fazer nesses shows, faíscas aparentemente inflamaram o papelão do revestimento acústico do teto. Pode ter havido um curto-circuito. O guitarrista da banda e um segurança contaram que, vendo as chamas se formar, tentaram acionar um extintor de incêndio - que não funcionou. No escuro, os primeiros a perceber o perigo trataram de escapar - apenas para serem barrados por seguranças porque não tinham pago as suas comandas. Quando eles se deram conta do que realmente se passava - notando, como o público, que a música havia parado -, e deixaram de bloquear a saída, era tarde. A multidão arremetia em desespero de um lado para outro. Muitos confundiram o acesso aos banheiros com a porta da rua. Os bombeiros encontraram ali muitos corpos amontoados. A causa de 90% das mortes foi a asfixia, não queimaduras ou pisoteamento.

O escândalo maior era a situação irregular da boate - com o alvará de funcionamento e o aval do Corpo de Bombeiros vencidos desde o ano passado. Um dos donos disse à Polícia que havia pedido a renovação. O delegado que o ouviu ficou de apurar se é verdade e, nesse caso, por que a autorização ainda não tinha sido dada. Qualquer que tenha sido o motivo, e ainda que não se possa atribuir a tragédia à falta do alvará, é óbvio que, nessas condições, a Kiss não podia estar funcionando. Ontem, cumprindo decisão judicial, foram presos dois sócios da boate e dois integrantes do conjunto. O uso de sinalizadores em locais fechados é outra controvérsia. Em 2003, um show pirotécnico durante a apresentação de uma banda matou 95 pessoas e feriu 160 em West Warwick, no Estado americano de Rhode Island. A história se repetiu na virada de 2004 no clube Cromañón, de Buenos Aires. Dessa vez, a pirotecnia provocou 194 mortes e feriu mais de 1.400. Na Argentina, o horror serviu pelo menos para a adoção de novas regras de segurança nas casas noturnas do país.

Em Santa Maria, o contraponto imediato à tragédia foi a rápida e competente mobilização do setor público federal e estadual, civil e militar - começando pela conduta exemplar da presidente Dilma Rousseff. No Chile, onde participava de uma reunião internacional, tão logo foi informada do acontecido, disparou uma sequência de telefonemas, transmitindo instruções precisas a ministros de Estado e outras autoridades. Falou também com o governador Tarso Genro. Em seguida, anunciou, sem segurar as lágrimas, que seguiria para a enlutada cidade gaúcha - "é lá que eu tenho de estar". Chegando ao Ginásio Municipal, para onde os corpos tinham sido levados, emocionou-se novamente com a dor de seus familiares e pessoas próximas. Antes de se retirar, revelando uma sensibilidade incomum ainda mandou que os presentes, sob um sol de 35°C, fossem encaminhados a uma área coberta, na companhia de assistentes sociais.

O mais dependerá da revolta, a "única emoção útil", no dizer do gaúcho Luis Fernando Veríssimo. "A revolta pede providências para que tragédias assim não se repitam."

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