domingo, janeiro 06, 2013

Nossas tragédias cotidianas - GAUDÊNCIO TORQUATO


O ESTADÃO - 06/01


Por nossas plagas, tragédias acontecem todos os dias. Algumas com data marcada, como as avalanches que assolam, em inícios do ano, o Estado do Rio de Janeiro, deixando à mostra a omissão dos governantes. Quando se imagina, porém, que o arsenal de mazelas se encontra locupletado, surgem modalidades exóticas que parecem disparates a testar nossa capacidade de distinguir entre o crível e o incrível, ficção e realidade.

O neurocirurgião que faltou ao trabalho na noite de Natal, no Hospital Municipal Salgado Filho, na capital do mesmo Estado do Rio, deixando de prestar socorro a uma menina de 10 anos ali internada com uma bala na cabeça, teve o desplante de dizer que faltava aos plantões havia um mês por discordar do critério do estabelecimento: apenas ele era escalado, quando o Conselho Regional de Medicina (CRM) exigia que fossem dois os plantonistas da noite. Domingo passado, a garota Adrielly dos Santos Vieira, que esperou oito horas para ser atendida, teve morte cerebral. Era um desfecho bastante previsível, como se pode aduzir de situações em que a torrente de violência urbana esbarra no hábito do caradurismo, particularmente cultivado nos corredores da administração pública. A recusa do servidor a cumprir o dever de dar plantão desvenda o véu de vícios que corroem a qualidade dos serviços essenciais, particularmente em duas frentes sensíveis para a população: a saúde e a educação.

Teria o médico feito raciocínio sobre as consequências nefastas de fugir à missão à qual se obrigava como funcionário público? Não teria passado por sua mente a ideia de que, numa cidade não tão pacificada, uma decisão com foco em interesse exclusivamente pessoal lesaria os interesses coletivos? Será que com o gesto de contrariedade tencionava fazer ver ao hospital a necessidade de mudar os critérios de escalação de plantonistas? Não lhe ocorreu a hipótese de cumprir o dever, sem abdicar do direito de fazer chegar ao CRM a indignação com os métodos adotados pelo hospital? Por que a rebeldia não redundou em pedido de demissão do emprego?

Seja qual for a explicação, não escapa à análise a observação de que o socorro tempestivo à menina atingida por uma bala perdida poderia tê-la salvo. Não seriam necessários dois plantonistas, bastaria um para retirar o projétil. Mas o bom senso, nessas horas, é sempre esquecido. Pois a matéria-prima usada na administração pública, por mais que se usem tecnologia de ponta e quadros qualificados, é embalada por uma cultura de omissão e inércia, na qual se originam vícios como burla, desvios, incúria, desleixo, irresponsabilidade.

Na área médica, os aparatos tecnológicos nem sempre geram resultados correspondentes ao seu porte. Estabelecimentos chegam a possuir equipamentos sofisticados. O que falta é médico. Pesquisa do Ipea aponta a falta de médicos como o maior problema do Sistema Único de Saúde, seguido da demora no atendimento. Tanto que a Câmara dos Deputados quer incluir o médico veterinário no SUS para compor o Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Piada? Não, é verdade. O subfinanciamento público da saúde é responsável direto pela deterioração dos serviços. No Brasil, o investimento público é de 44%, enquanto no Reino Unido é de 84% e na Argentina, 66%.

Como é fácil constatar, as mazelas da vida pública bebem em diversas fontes, dentre as quais sobressaem os feudos administrativos fundados sob o império da política, onde os abonados caciques e senhores de tais domínios tomam o lugar de perfis qualificados. A convicção de que a propriedade pública lhes pertence confere aos donatários dessas capitanias o poder de mandar e desmandar, nomear e expulsar e, por consequência, a imposição de um modelo personalista de gestão, sob o qual se propagam os "pedágios" para entrar, ganhar concorrências ou acelerar a burocracia que cerca processos. Mesmo estruturas modernas que agregam sistemas sofisticados de cobrança e controle de metas padecem da "cultura da arrumação".

Faz parte do "jeitinho brasileiro de ser" a falta ao trabalho. O absenteísmo espraia-se pelas mais variadas frentes da administração pública. Parcela ponderável dos faltosos usa o expediente do atestado médico fajuto. Na área educacional, essa situação chega a prejudicar (com aulas vagas) cerca de 15% do ano letivo das escolas públicas. A "cultura da embromação" (faz-se aqui um adendo em reconhecimento aos afastamentos por motivos supervenientes) compromete a aprendizagem de alunos e causa danos ao calendário escolar, eis que deflagra soluções capengas como ajuntamento de turmas, dispensa de grupos, extensão dos cursos, sobrecarga de professores, etc.

Essa é a moeda podre do custo Brasil nas malhas da administração, na qual práticas e maus costumes culminam na prestação de serviços deficitários ou de má qualidade, com efeitos perversos sobre a coletividade. Essa tem sido a batalha do presidente da Câmara de Gestão e Competitividade do governo federal, empresário Jorge Gerdau, o maior defensor da eficiência e qualidade da administração, que luta por um Brasil mais competitivo.

Por último, um olhar para outro aleijo no corpo produtivo, a burocracia. A imagem mais próxima que se tem é a do cartório. Há 17 mil cartórios, que processam cerca de 15 milhões de certidões diárias. O comércio do carimbo é dos mais fortes no País. O custo global da burocracia é estimado em cerca de R$ 100 bilhões por ano. Acelerar um processo na administração pública, só mesmo com jeitinho. Ou seja, dando pernas aos papéis.

A historinha é reveladora. O cidadão chega à repartição e pede para ver seu processo. Ouve: "Ah, meu senhor, tem muitos outros na frente do seu. Vai demorar um tempão até ser despachado. Papel, doutor, não tem pernas". Agastado, o interlocutor reage: "E quanto o senhor quer para pôr dois pés nesse papel?". Responde o esperto: "Depende, o senhor quer pernas de tartaruga ou de lebre?". A nota tirada da carteira era para uma corrida de lebre. Tiro e queda. O adjutório fez o papel correr rapidinho.

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