terça-feira, janeiro 01, 2013

Feliz ano novo de novo - ARNALDO JABOR

O GLOBO - 01/01


O ano de ver o eclipse do sol contra a neblina pela janela da infância, o ano de ver as primeiras imagens de minha mãe que era uma Greta Garbo com ombros altos e cabelo de coque “bomba atômica”, o ano do quarto onde meus pais conceberiam minha irmã, o ano de olhar árvores, bichos e gente como se eu morasse fora do mundo, o ano das pernas das mulheres, colunas altas e distantes, o ano dos fantasmas do fundo do corredor, o ano do cachorro atropelado, o ano dos meninos se comendo de solidão, o ano do medo de virar veado, o ano de ficar olhando o vento no quintal, o ano dos formigueiros, o ano do sarampo e sua lâmpada vermelha, o ano da catapora, o ano da luz azul do quarto da pneumonia, o ano da cabeça quebrada, o ano da cara quebrada, o ano de ver os miseráveis do morro da Mangueira perto de minha casa, o ano de ver o primeiro filme de minha vida, o “Ladrão de Bagdá”, e ficar sonhando com a odalisca no tapete voador, o ano dos balões no céu, o ano do Mercury “grená” de meu pai brilhando na luz da rua, o ano do cuspe, o ano da porrada na esquina, o ano dos palavrões, o ano da “merda” e da “puta que pariu”, o ano da inveja, o ano da bicicleta, o ano da primeira namorada que me tratava como nada, o ano de temer a Deus e de contar meus crimes aos padres negros de quem eu beijava a mão, o ano em que um padre me deu um beijo na boca e eu fugi com pânico na alma, o ano do Porcolino e do Pernalonga, das mil e uma noites, o ano da mula sem-cabeça e do mendigo que dava mijo para a mãe, o ano da camisa de Vênus boiando na beira da praia, o ano do negro comendo a empregada no quarto de passar roupa, o ano da febre, o ano da violência dos colegas de colégio, o ano das velas de ceras na igreja, o ano do coroinha sem fé, o ano do covarde, o ano do soco na cara do mais forte e do sangue no nariz do valentão, o ano da descoberta do orgulho, o ano do Tarzan, o ano do Super-Homem, o ano da porra, o ano da punheta por causa da mulher de biquíni na praia, o ano da empregada de peitos grandes e que deixava quase tudo, o ano da dor nos rins, o ano de entrar no porão com a menina, o ano de sentir o gosto de cuspe da menina, o ano de ficar escrevendo o dia inteiro numa febre de descobrir alguma coisa que ainda acho que vou achar, o ano da primeira mulher, uma aeromoça louca da Panair, o ano do meu corpo e do corpo da mulher, o ano das lágrimas quentes, o ano da solidão, o ano das pernas cruzadas dos primeiros puteiros visitados, o ano do Mangue, da indescritível visão do Mangue que só Segall conheceu com as mil mulheres tremendo a língua para fora e seminuas nas calçadas, o ano dos bordéis antigos de luz mortiça, o ano das coxas, dos peitos, o ano cabeludo, o ano oleoso, o ano das peles, o ano de nada entender, o ano da gonorreia, o ano de comer o primeiro amor e de flutuar de paixão sobre as calçadas de Copacabana, o ano da lua dourada, do sol vermelho, o ano de Ipanema, de Leila Diniz, o ano dos gritos da mulher amada no colchão sujo e esfarrapado numa noite de chuva dentro de um aparelho do Partido Comunista, o ano do amor e da revolução — as duas coisas se confundindo (“serão as bombas ou meu coração batendo?”, como em “Casablanca”), o ano da UNE pegando fogo, o ano dos exilados, o ano de Corisco, o ano de Tom e Vinicius, o ano do Carcará, o ano do Cinema Novo, da noite negra do Ato 5, o ano que não terminou, o ano da boca fechada, o ano da boca no cano de descarga, o ano do nervo do dente exposto na boca do torturado, o ano das unhas arrancadas, o ano dos gritos, o ano dos guerrilheiros suicidas, o ano de cortar a barriga com a faca de bambu, o ano de cortar os pulsos com gilete enferrujada, o ano das cabeças muito loucas, o ano de viver perigosamente, o ano da mescalina e do ácido, o ano das pernas e dos braços virando cobras na “bad trip” da beira da praia, o ano das ondas vermelhas e céus tangerina, o ano de Copacabana virando gelatina colorida, o ano de Janis Joplin de porre num puteiro baiano cantando ponto de candomblé, o ano da esperança nova, o ano de Nelson Rodrigues, de Darlene Gloria, o ano das filhas nascendo de dentro de um buraco estrelado, o ano da esperança, de sentido, o ano da inocência, o ano da ingenuidade, o ano do leite, o ano do ventre molhado, o ano dos quartos escuros, o ano da vida, o ano do sol, o ano do jambo vermelho, o ano das formigas, o ano das bonecas, o ano do olho furado, o ano de ficar louco, o ano do corno, o ano do babaca, o ano de chorar, o ano de aprender a viver de novo, o ano do cachorro, o ano da vaca louca, o ano da cachorra no ar, o ano da beira do abismo, o ano da volta à democracia, o ano do não, o ano do sim, o ano da hiperinflação, o ano da inflação zero, o ano do real, o ano da esperança, o ano da vitória na Copa, o ano de outras palavras contra velhas palavras, de novas agendas contra as velhas agendas, o ano dos Mamonas assassinadas, o ano dos índios queimados vivos, o ano dos desacontecimentos, o ano dos cabelos brancos, o ano do último voo de minha mãe, o ano de meu pai voando atrás dela, o ano da orfandade, o ano da marcha a ré, o ano do regressismo político, o ano dos eruditos burros, o ano da chegada dos bolchevistas ao poder, o ano da aliança da mão esquerda com a mão direita, o ano dos ladrões revolucionários, o ano da mentira que virou verdade, o ano da desmoralização da honestidade, o ano das alianças sujas, o ano dos peronistas aliados aos senhores feudais, o ano das mãos na cumbuca do país, o ano da decepção com o partido do povo, o ano da cortina rasgada do bordel que Jefferson nos revelou cantando ópera, o ano da descoberta do óbvio, o ano das ilusões perdidas, o ano do nascimento do Supremo Tribunal Federal, o ano do negão, o ano da coragem e da covardia, o ano que vai começar mais uma vez e vai terminar mais uma vez daqui a um ano deixando sempre a sensação de oportunidade perdida e de esperança fracassada até que comece um novo ano trazendo novas expectativas sempre frustradas até começar um novo ano.


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