quinta-feira, janeiro 03, 2013

Entra ano, sai ano - CORA RÓNAI

O GLOBO - 03/01


Lembranças das noites de réveillon passadas


Uma vez, quando os meus filhos eram crianças, resolvemos passar o réveillon num barco. Saímos com amigos da Marina da Glória e paramos em frente à praia de Copacabana para ver os fogos. Chovia torrencialmente, o mar estava batido e ficamos molhados até os ossos. Mal tocamos na ceia: comer debaixo daquele aguaceiro, num barco que jogava para cá e para lá, não era uma boa experiência. Mais molhados do que nós só mesmo os fogos, que exibiram muita fumaça e pouco brilho. Fiquei contente quando a festa, se é que podemos chamá-la assim, acabou. Mal podia esperar para voltar para casa.

Na Marina, o pessoal mais animado — sim, apesar dos pesares havia um pessoal animado — resolveu continuar no barco e navegar até o amanhecer. Paulinho estava nessa turma. Bia e eu só nos lembramos de que as chaves de casa estavam na mochila dele quando o barco se afastou. Gritamos e acenamos, e o pessoal de bordo acenou de volta, alegremente. Logo o barco sumiu na noite e nós duas começamos o nosso périplo em busca de abrigo.

Papai, Mamãe e os tios estavam no sítio, Laura estava em Nova York, os amigos mais chegados, cujos telefones sabíamos de cor, estavam espalhados pelo mundo. Eram tempos de orelhão e de caderneta de endereços, e ninguém, em sã consciência, levava um tesouro como uma caderneta de endereços para um réveillon al mare.

Paramos em pelo menos uma dúzia de hotéis. Os poucos que tinham quartos achavam esquisitíssimo uma moça e uma menina querendo se hospedar àquela hora, sem bagagem, e nos mandavam embora. Acabamos dormindo dentro do carro, encharcadas, famintas e desconsoladas com aquele começo de ano nada auspicioso.

Paulinho chegou quase na hora do almoço, trazendo notícias do naufrágio do Bateau Mouche. Mais tarde, quando vimos o noticiário na TV, fiquei horrorizada com o risco que havíamos corrido. E, no fim do ano, ninguém conseguiu tirar da cabeça da Bia a ideia de passar o réveillon de 1990 de preto: ela não havia se esquecido da imagem dos mortos, todos vestidos de branco.

Ao contrário do péssimo réveillon de 1989, o de 2013 entra para a minha história como o mais perfeito de todos que vivi no Rio. O mar estava um espelho, não choveu, os fogos quase não fizeram fumaça. A natureza caprichou, assim como o povo do foguetório, que merece nota dez.

A volta para casa, porém, continua problemática. Ao estipular que taxis e ônibus só voltariam a circular por Copacabana às 4h, a prefeitura castigou todas as crianças, todos os velhinhos e todas as pessoas que já descobriram que têm joelho.

No trajeto entre a Avenida Atlântica e a minha casa presenciei cenas dignas de retiradas épicas: crianças virando abóboras, idosos exaustos sentados no meio-fio, reclamações por todos os lados. A alegria da linda festa da praia se perdia a olhos vistos pelo caminho.

Em Ipanema, não havia taxi nem para remédio, e vans e ônibus passavam lotados. A Praça General Osório, que mais uma vez virou mictório público, dava engulhos nos passantes; houve apagão na Vinicius de Moraes, problema sério numa rua em que a calçada é uma sucessão de buracos.

Outro problema: a quantidade absurda de lixo que as pessoas largam na praia e espalham pelas ruas. Quando cheguei a Copacabana, às 21h30m, a praia já estava imunda, cheia de oferendas, garrafas, latas e lixo de toda a espécie. Está mais do que na hora de tentar consertar essa falta de educação generalizada.

Ninguém descreveu a virada como a Fal Vitiello de Azevedo, moça que sabe das coisas:

“Fui dormir bêbada e foi uma sensação maravilhosa e eu dormi como um coelhinho bebê que estivesse dormindo no mesmo ninho que o ursinho do comercial de amaciante, dois dos gatos da Stella Cavalcanti, um cobertorzinho felpudo e um travesseiro em formato de carneirinho. Acordei me sentindo dentro do trato digestivo de um camelo velho e rabugento que jantou guisado de coiote, mas não quero falar sobre isso, porque quando cheguei em casa Maliu tava assando bolo de uva. Entendi pra que serve bolo de uva e porque minha mãe é este ser sábio e catito.”

Está todo mundo atrás do escalpo do neurocirurgião Adão Orlando Crespo, que faltou ao plantão no Salgado Filho na noite de Natal e deixou sem atendimento a menina vítima de bala perdida.

Está certo. Quem não quer trabalhar na noite de Natal não deve fazer medicina. Faltar sem motivo a um plantão do qual dependem pacientes em estado grave é um ato criminoso.

Dito isso, é muito cômodo para o prefeito — e para o governador — ter um bode expiatório tão prático quanto um médico irresponsável. Não vi, da parte deles, nenhuma indignação pelo fato que, em primeiro lugar, não deveria ter acontecido. Como é que uma criança é atingida por uma bala perdida na porta de casa, ainda por cima numa comunidade supostamente pacificada? Cadê as investigações para descobrir de onde saiu o projétil?

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