segunda-feira, janeiro 21, 2013

Brincando com fogo - MARCELO DE PAIVA ABREU


O ESTADÃO - 21/01

A inflação persistente, que ronda o limite superior do regime de metas, começa a ser encarada com naturalidade.Embora esse regime, com todas as suas limitações,tenha assegurado que a inflação fosse mantida razoavelmente sob controle, tornam-se frequentes os comentários de analistas pretensamente "desenvolvimentistas" alegando que ele foi abandonado nas economias desenvolvidas. A sugestão é que, mais uma vez, em nome do crescimento e em meio à crescente permissividade fiscal, o controle da inflação seja flexibilizado. A dificuldade em aprender com o passado é chocante.

Quase 20 anos depois de a inflação em 12 meses ter beirado 5.000%, tal imprudência parece despropositada. O livro de Miriam Leitão, Saga Brasileira - A longa luta de um povo por sua moeda (Record, 2011), alcançou sucesso estrondoso de crítica e de público ao combinar a análise do processo decisório que marcou as sucessivas tentativas de estabilização, entre o início da década de 1980 e o Plano Real, como relato rico e detalhado das agruras da população coma inflação e as tentativas de contê-la até 1993-1994. De fato, o livro supre uma surpreendente lacuna na produção literária brasileira. A despeito do longo processo inflacionário que se acelerou a partir de 1980, não há registro de produção literária significativa que resgate o impacto desse processo sobre o cotidiano dos brasileiros. Ao que tudo indica, por enquanto, a vontade de exorcizar a longa experiência tem impedido tais reminiscências.

É interessante buscar comparações com outros países onde as experiências inflacionárias foram significativas. O caso da Alemanha é paradigmático: a atração de combinar as reminiscências da hiperinflação com a humilhação da ocupação da Renânia serviu de pano de fundo para obras influentes,com enredos centrados em 1923.

Hans Fallada, em Lobo entre lobos (Melville House, 2010), registra como Wolfgang Pagel e Petra Ledig, massacrados pela crise de 1923 em Berlim, encontram redenção na vida rural pós inflação. Muitos trechos terão eco em leitores brasileiros com memória longa e menos entorpecida: "Os salários vão ser pagos no fim do mês, dentro de uma semana. Qual será a cotação do dólar? Vai ser suficiente para comprar comida para a quinzena? Para dez dias? Três dias? Depressa mulher, eis mais 10 mil marcos. Compre alguma coisa- um quilo de batatas, abotoaduras, o disco Sim, não temos bananas ou uma corda para nos enforcarmos - não interessa o quê. Mas seja rápida, não perca um segundo".

No último capítulo do livro, intitulado O milagre do Rentenmark, que marcou o fim da inflação, o parentesco com o Plano Real é óbvio: "Para começar, as pessoas olhavam para as novas notas algo estupefatas. Havia apenas o dígito um, ou dois, ou o número dez; se havia dois zeros depois do número, então era uma nota de valor muito alto. Estranho, para quem se havia acostumado a contar milhões e bilhões... e desses números baixos, dessas moedas e notas de baixa denominação, surgia algo mágico. As pessoas começavam a calcular e, subitamente, percebiam que suas contas fechavam. Agora o dinheiro não iria mais fugir deles".

Mais cáustico é Erich Remarque, em O obelisco negro (Civilização Brasileira, 1957), que, depois de mais de 30 anos, reviveu o ano de 1923 na sua cidade natal. O herói, Ludwig Bodmer, trabalha numa empresa, propriedade dos irmãos Kroll, que vende monumentos funerários. Um dos irmãos tem dificuldade em entender os efeitos da inflação. Georg Kroll, o irmão esperto, é autor de frase lapidar ao insistir em que "vivemos numa época em que vender empobrece", ao criticar o irmão iludido por lucros imaginários, por não saber deflacionar preços nominais. Ludwig e Georg o sabem, e buscam sobreviver com o uso de expedientes como comprar carnês de refeição baratos no início de 1923 e usá-los todo o ano. Malandragem aparentada ao congelamento da correção monetária cobrada nos empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social( BNDES) no início dos anos 1980...

Depois de grandes esforços, Ludwige Georg conseguem convencer o veterano suboficial Knopf,especialista na classificação e ingestão de Schnapps, a comprar um túmulo.Como fim da inflação, Knopf enlouquece: "Exijo 8 trilhões, grasna". Ludwig responde: "Senhor Knopf,o senhor ainda não acordou de um sonho que durou muito tempo. A inflação acabou.Há 15 dias poderíamos ter pago 8 trilhões pelo monumento tumular pelo qual havia pago 8 bilhões. Hoje, vale 8 marcos". Knopf se indigna: "Canalhas, fizeram de propósito... acabaram com a inflação. Para me roubar. Mas não vou vender. Espero a próxima inflação". Diálogo pedagógico.

Na ânsia de garantir algum crescimento e na esteira de desempenho medíocre da economia, o governo brasileiro, de olho nas eleições do ano que vem, ficará tentado a ter ainda maior leniência com a política fiscal e a inflação.É algo que poderá resultar na pior combinação possível: crescimento ainda medíocre e abandono do compromisso de longo prazo com a estabilização. Será oneroso, se for preciso tudo isso para caracterizaras limitações da atual política econômica.Como em medicina, o ideal é que se comprove que o tratamento é equivocado antes que se agrave o estado do paciente.

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