terça-feira, janeiro 15, 2013

Agustina é o nome - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 15/01


Mas como é possível só ter ouvido falar do maior gênio vivo da literatura portuguesa?


Existem vários mistérios no mundo editorial brasileiro. Mas o maior de todos é Agustina Bessa-Luís não figurar entre os grandes. E por "grandes" leia-se Machado de Assis ou Guimarães Rosa. Leia-se Fernando Pessoa ou José Saramago.

São incontáveis as conversas com amigos brasileiros que ficam com o rosto impassível sempre que elogio Agustina. Sim, eles ouviram falar. Mas como é possível só ter ouvido falar do maior gênio vivo da literatura portuguesa?

Não é possível. Nem desculpável. Sobretudo quando Agustina, autora de vastíssima obra, escreveu um dos mais belos testemunhos sobre o Brasil e as suas gentes.

O livro, reeditado em Portugal pela Babel, intitula-se simplesmente "Breviário do Brasil". É composto por uma narrativa longa, fruto de uma viagem pelo país em 1989, e complementado por textos dispersos e circunstanciais sobre o país.

No essencial, é uma carta de amor ao Brasil, terra onde o pai de Agustina viveu 25 anos e que, através dos seus autores, introduziu a autora na república das letras.

Entre esses autores, há os óbvios: José de Alencar, Machado, Olavo Bilac. E depois há os menos óbvios, como Raduan Nassar ("Um Copo de Cólera", naturalmente) e um certo Escragnolle Dória, que honestamente desconhecia. "Porque se perderam as suas pegadas, não sei, tanto mais que no Rio não neva", escreve a autora.

A pena de Agustina é essa mistura de ironia e aforismo, que alcança alturas sábias quando se debruça sobre o caráter de um povo. Serão os brasileiros um exemplo de alegria para turista ver?

Nunca comprei essa versão dos fatos. Agustina também não: a singularidade do brasileiro está na forma como disfarça a sua natureza trágica. "Os brasileiros", escreve Agustina, "têm essa instabilidade dos que se ofendem depressa e só esperam o acaso da ofensa para ir embora e cortar as amarras com a servidão do amor".

Stefan Zweig, aliás, já tinha notado o mesmo: "Não é da índole do brasileiro justificar-se ou exigir justificação, queixar-se ou mostrar-se zangado e entrar em explicações".

Agustina concorda com o austríaco. E conclui: "Como nos povos trágicos, e o grego é um deles, há um orgulho profundo [nos brasileiros] que se fere quando o sentimento é posto em dúvida. Quebra-se a aliança antes de a relação ou o negócio ser quebrado".

Mas o livro não se prende apenas com sentenças maiores. Também há observações sobre coisas menores que igualmente revelam a natureza de uma cultura.

Agustina tanto pode falar dos Cristos do Aleijadinho em Minas ("duma beleza estilizada ao ponto de parece cinematográfica") ou do simples vendedor de rua no Rio ("Há uma elegância natural no vendedor da rua; não pedincha, não tem a veemência do oriental, que é, de certo modo, um pregador que argumenta. O carioca mostra o artigo, desinteressa-se logo do negócio, parece que experimenta apenas o nosso grau de cobiça").

E, depois, as cidades propriamente ditas. São Paulo não merece grandes linhas, embora também não seja "a cidade mais feia do mundo, com todas as desvantagens de Calcutá e sem as vantagens de Tóquio".

Agustina prefere Salvador ("as calçadas, que só no Douro há semelhantes, são feitas para pé descalço"), mas não o calor de Salvador ("parece um queijo da serra, gordo, pastoso, que se nos atravessa no caminho como derretido").

Mas o melhor são as observações sobre Brasília. Ou, melhor dizendo, as observações dos próprios brasileiros sobre a sua capital: "Quando se fala em Brasília toda a gente põe reservas ou usa dum tom inteligente, de quem tolera mas não aprova"). Confirmo. Quem não confirma?

Finalmente, viajar no Brasil é, para um português, reconhecer "o idioma, a religião e os costumes"; mas é também reconhecer que o Brasil é outra coisa -não um Portugal "inchado pelo calor", como dizia Eça de Queirós; mas um neto que saiu de casa há muito tempo para constituir família e fortuna bem longe dos avós.

"Ser português no Brasil", escreve Agustina, "é tão natural como ser papa em Avinhão; o que quer dizer que tem os seus quês e, às vezes, suas embirrações. Mas tudo com boas maneiras e sentimento de família".

Para quem vive entre os dois países, nunca encontrei sentença mais perfeita sobre aquilo que nos (des)une.

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