domingo, janeiro 27, 2013

A festa de Abraham Lincoln - ELIO GASPARI


O GLOBO - 27/01


Coisa muito boa. Um grande filme ("Lincoln") de um soberbo diretor (Steven Spielberg), com um magnífico desempenho (Daniel Day-Lewis no papel do presidente), extraído de um belo livro ("Team of Rivals", de Doris Kearns Goodwin) sobre um luminoso período da História, o final da Guerra Civil americana, com o triunfo do progresso sobre o atraso.

São duas horas e meia de arte, prazer e instrução. Spielberg fez seu filme tratando das poucas semanas durante as quais Lincoln dobrou a Câmara dos Deputados, aprovou a 13ª emenda à Constituição e acabou com a escravidão nos Estados Unidos. O Sul já estava derrotado, mas a libertação definitiva de quatro milhões de negros significaria o maior confisco patrimonial da História.

 O filme saiu do "Team of Rivals", no qual o episódio da aprovação da emenda, com suas tramoias, ocupa menos de dez páginas. A mágica de Spielberg esteve em capturar a alma da obra de Doris Kearns Goodwin. Ela trabalhou na Casa Branca, escreveu sobre os presidentes Roosevelt, Kennedy e Lyndon Johnson. (Seu marido, Richard Goodwin, assessorou os dois últimos e, em julho de 1962, defendia que os militares derrubassem logo o presidente João Goulart.) 

O Lincoln de Daniel Day-Lewis entrará para a história do cinema como uma das melhores caracterizações de um personagem, disputando com o general Patton de George C. Scott, que era mais fácil.

 Aquilo que parece exagero tem tudo para ser acerto. O andar de Lincoln era esquisito, sem se apoiar no calcanhar, porque tinha pés chatos. Ademais, era desegonçado mesmo. Resta só um problema: não há gravação de sua voz. 

Spielberg cometeu poucas licenças cenográficas. Uma delas, deliberada. Na rendição do general sulista Robert Lee, Ulysses Grant, comandante das tropas do Norte, aparece com a uniforme em razoável estado e as botas limpas. Na realidade, estava enlameado e a roupa, amarfanhada. Quem os visse, pensaria que o vencedor da guerra fora Lee. Além disso, é improvável que Thaddeus Stevens (Tommy Lee Jones) tenha levado para casa o original da emenda.

A edição americana do "Team of Rivals" tem 944 paginas. A autora fez uma versão resumida que foi publicada na França e saiu no Brasil, com um terço do tamanho. Com os cortes, sumiu a cabala narrada no filme.

O "Lincoln" acaba de chegar às livrarias. Custa R$ 34, e não tem versão eletrônica. Desse jeito, cria-se um pedágio para o uso da língua portuguesa, pois o e-book da edição integral, em inglês, sai por R$ 20,39.

Em Pindorama, o Sul venceu

Deve-se a Darcy Ribeiro um resumo da desdita brasileira na segunda metade do século XIX: "Aqui o Sul venceu". Enquanto na Guerra Civil americana morreram 600 mil pessoas e, entre 1863 e 1865, libertaram-se todos os escravos, em Pindorama, onde nessa época havia cerca de dois milhões de pessoas escravizadas, a Abolição só veio em 1888.

D. Pedro II se manteve neutro (piscando o olho para o Sul) e os portos brasileiros davam guarita a navios rebeldes que pirateavam no Atlântico Sul. Isso até outubro de 1864, quando o governo acolheu no porto de Salvador uma embarcação confederada. Uma canhoneira do Norte atacou o barco, sequestrou-o e afundou-o em alto mar.

A essa época o embaixador americano no Brasil era James Webb, um jornalista americano, cupincha do secretário de Estado William Seward (aquele que usa roupa de brocado no filme).

Um picaretaço. Achava que a abolição era mais perigosa que a escravatura. Diante da simpatia de Lincoln pela ideia de uma deportação dos negros americanos, Webb foi à luta e tentou organizar uma empresa de colonização capaz de trazer 100 mil negros para a Amazônia. Ela teria um capital binacional de até cinco milhões de dólares e cada deportado receberia um lote de 40 hectares, uma choupana e algum equipamento. O presidente da companhia seria nomeado pela Casa Branca. Quem? Ele. O plano naufragou em Washington, em Londres e no Rio de Janeiro. Aqui, mostrando que Darcy Ribeiro tinha razão, o Marques de Abrantes disse a Webb que a migração lhe parecia inviável, pois o governo imperial não pretendia admitir negros livres na Terra da Santa Cruz. (Passados mais de 150 anos, o gerente da concessionária Autokraft da BMW, na Barra da Tijuca, enxotou da loja uma criança negra livre de sete anos.)

A guerra civil americana causou tanto horror à sociedade escravocrata brasileira que o maior dos poetas abolicionistas, Castro Alves, passou batido no assunto. Seis anos depois da morte de Lincoln chamou seu assassino de "cavaleiro sinistro".

Terminada a guerra, D. Pedro foi aos Estados Unidos, visitou o presidente Grant e andou de braço dado com o general Sherman, o devastador do Sul. Sua obra foi mostrada em "E o Vento Levou...".

As relações dos Estados Unidos com o Brasil nesse período estão contadas num grande livro: "O Sul mais Distante" ("The Deepest South"), do professor americano Gerald Horne. A tradução, em papel, sai por R$ 59,50. O original está na rede por R$ 20,72.

Lota já sabia

Para os arquivos do prefeito Eduardo Paes e da doutora Jurema de Sousa Machado, presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

No dia 28 de outubro de 1964, o governador Carlos Lacerda pediu ao criador do IPHAN, Rodrigo Mello Franco de Andrade, o tombamento do parque do Aterro do Flamengo.

Foi atendido.

Em dezembro daquele ano, Lota de Macedo Soares, a quem se deve a maravilha, enumerou para o doutor Rodrigo todas as obras e edificações do parque, "feitas ou a fazer". Lá está uma "marina na enseada da Glória". Não há previsão de auditórios, estacionamentos ou centro de convenções. Até aí, nada de novo. O relevante na carta de Lota foi sua premonição:

"Pelo seu tombamento o Parque do Flamengo ficará protegido da ganância que suscita uma área de inestimável valor financeiro, e da extrema leviandade dos poderes públicos quando se trata da complementação ou permanência de planos."

O parque foi tombado. Se Paes ou Souza Machado olharem em volta, verão a "ganância". Se deixarem que se construa um mafuá na área da marina, verão no espelho a "leviandade dos poderes públicos".

Ivete não dói

O governador Cid Gomes contratou a cantora Ivete Sangalo para animar uma inauguração de hospital pagando-lhe R$ 650 mil pelo show.

Quando o Ministério Público reclamou, ele disse que "doa a quem doer" realizará o evento.

O doutor pode torrar R$ 650 mil na inauguração de um hospital. O que ele não pode é misturar o nome de Ivete Sangalo com algo que doa.

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