quarta-feira, janeiro 09, 2013
A era do deboche - ROLF KUNTZ
O Estado de S.Paulo - 09/01
Mais uma vez as chuvas do verão destroem, desalojam e matam, de modo tão previsível quanto as bandalheiras orçamentárias, mas o governo federal só gastou no ano passado cerca de um terço - 32,2% - das verbas previstas para prevenção, enfrentamento de desastres e reconstrução. O Tesouro pagou R$ 1,85 bilhão dos R$ 5,75 bilhões autorizados, segundo números oficiais tabulados pela respeitada organização Contas Abertas. Nada espantoso, nada anormal. A normalidade inclui, segundo altos funcionários da Fazenda, malabarismos contábeis para a encenação do cumprimento da meta fiscal. Foi tudo legal, tudo certinho, segundo o secretário do Tesouro, Arno Augustin. Não seria mais fácil, mais claro e mais decente reconhecer o mau resultado e tentar, se fosse o caso, justificá-lo? Em outros tempos, com certeza. Na era do deboche, é igualmente normal deixar a aprovação do Orçamento para depois, porque o Executivo dará um jeito de garantir as despesas, dentro ou fora dos padrões constitucionais.
Neste tempo bandalho, o poder público tem prioridades muito mais interessantes que administrar a vida coletiva e servir aos interesses da sociedade. É preciso aproveitar o tempo e o dinheiro dos contribuintes para financiar empresas selecionadas, proteger setores amigos, oferecer contratos a grupos felizardos e pôr as estatais a serviço de projetos políticos pessoais e partidários. Também natural - como consequência - foi a deterioração da Petrobrás, depois de anos de submissão a decisões centralizadas no Palácio do Planalto. Com persistência, a nova presidente, Graça Foster, talvez consiga arrumar a empresa, se ficar no posto por tempo suficiente. Tem mostrado disposição para o trabalho sério, mas sua figura contrasta, perigosamente, com a maior parte do cenário.
Na era do deboche, os padrões políticos e gerenciais se degradam em quase todos os cantos e todos os níveis do sistema de poder. Um bonde sai dos trilhos, por falta de manutenção, e passageiros morrem. A primeira reação das autoridades é lançar suspeitas sobre o motorneiro, também morto no acidente. Uma criança baleada fica oito horas sem atendimento, embora levada a um hospital. Resposta oficial: o médico faltou. Faltou, sim, mas essa é a resposta errada. Pode ter sido irresponsável, mas também poderia ter sido atropelado ou atingido por um raio. Em qualquer cidade gerida com um mínimo de competência e seriedade, os serviços públicos essenciais funcionam como um sistema. Não havia outros médicos disponíveis? Não se podia mobilizar uma ambulância para levar a vítima a um lugar onde recebesse assistência? Na segunda maior cidade de uma das dez maiores economias do mundo, a falta de um único funcionário pode comprometer o socorro de emergência a uma pessoa ferida ou doente.
Mas o padrão se repete. Na capital federal, crianças ficaram sem atendimento porque plantonistas faltaram para prestar exames de residentes. Nenhum administrador sabia? Afinal, quem aplicou o exame? Novamente: que porcaria de sistema administrativo deixa a segurança dos pacientes na dependência de jovens profissionais? Sistemas organizados para funcionar de verdade têm mecanismos de segurança. São impessoais. Nenhum dirigente de nível superior tem o direito de renegar a própria responsabilidade para transferi-la aos subordinados na ponta da linha.
Na era bandalha, quem se importa com a escala das responsabilidades e com a qualidade gerencial do setor público? O governo brasileiro comprometeu-se em 2007 a hospedar a Copa do Mundo de 2014. Em 2011, quando o novo governo se instalou, nada, ou quase nada, havia sido feito para preparar o País. Havia atraso nas obras de aeroportos, estádios, estradas e sistemas urbanos de transporte. Os atrasos continuam, mas os custos subiram, muito dinheiro foi desperdiçado e mais ainda será perdido.
Nesta fase debochada, os apagões se multiplicam e chegam a atingir vários Estados, às vezes por várias horas. Os altos funcionários do sistema falam em raios, depois em falhas humanas. A chefe de todos recomenda aos jornalistas uma gargalhada, se alguém mencionar novamente a queda de um raio. Mas quem tem autoridade para pôr ordem na casa e cobrar seriedade na gestão do sistema?
Em tempos bandalhos, o presidente da Câmara dos Deputados promete asilo a condenados num processo penal - criminosos, portanto -, se a Justiça ordenar sua prisão. Qual o próximo passo: votar a revogação das penas? Combinaria bem com os padrões atuais de normalidade. Quando o Congresso adia a votação do Orçamento, crianças ficam sem assistência médica porque o serviço hospitalar é um desastre, a economia emperra porque a infraestrutura se esboroa e a diplomacia, outrora competente e respeitada, se torna subserviente à senhora Cristina Kirchner, a piada final é atribuir os males do País ao câmbio valorizado e aos juros. Abaixo o real, e tudo será resolvido.
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