quarta-feira, dezembro 12, 2012

Transições - ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 12/12


O acontecimento da semana foi o trânsito para a eternidade de dois grandes artistas: Oscar Niemeyer, um raríssimo arquiteto; e David “Dave” Brubeck, um extraordinário músico.

Convivi com ambos espiritualmente na minha primeira e mais sonhadora juventude, na lírica fosforescência dos meus 14 aos 18 anos, quando pensei em ser desenhista e arquiteto, tocado por uma imensa admiração por Oscar Niemeyer, cuja obra eu acompanhava, tendo visitado — quando ginasiano do Colégio São José, em Juiz de Fora — o famoso mas ainda desconhecido Colégio de Cataguases, em Minas Gerais. Lá eu vi o mural “Tiradentes” de Portinari, fui envolvido pelos jardins de Burle Marx, fiquei impressionado com as rampas do edifício encomendado, já na década de 40, pela família Peixoto a Niemeyer; e tive um alumbramento no melhor estilo de Manuel Bandeira, ao ouvir Frank Sinatra cantando “Stormy Weather” num enorme e pesado disco de 78 rpm.

Meu laço com a música é igualmente profundo. Nasci ouvindo o piano de minha mãe a tocar todo tipo de composição, sem erro ou embaraço — essa marca dos grandes artistas. Mas conheci o jazz, indo além de Louis Armstrong, por meio da liderança dos Sílvios Lago — o pai — e, sobretudo, o filho, que me fez ouvir o “Dave Brubeck Quartet” e outros e outros monstros do jazz (Oscar Peterson, Bill Evans e o meu favorito, o virtualmente cego Art Tatum) que comparávamos em discussões tão veementes quanto despropositadas, com os grandes clássicos da música europeia — esses sim, músicos de verdade! Graças ao Silvinho, ao Moliterno, ao Paulo, ao Geraldo, entre tantos outros, fui instantânea e permanentemente — esse milagre da música — usurpado pelo “Blue Rondo à la Turk” e pelo “Take Five”.

Vale notar que minha introdução ao jazz, à arquitetura e ao “modernismo” em geral foi paralela à minha descoberta e imediata conversão ao comunismo na sua versão nacional: vitoriana, positivista e milenarista, fundada num esquemático evolucionismo linear que critiquei num dos meus livros mais lidos: “Relativizando: uma introdução à antropologia social”, muitos anos depois. Mas isso é uma outra história.

Naquele momento, no final da adolescência e tendo as primeiras experiências de homem, eu me deliciava ouvindo música e descobrindo a política da história e, muito mais importante, a história como política. Mas onde eu me concentrava mesmo era na prancheta de desenho, situada debaixo da janela do quarto que servia a mim e aos meus quatro irmãos. Um quarto com camas beliche que mais parecia um alojamento de submarino dos filmes da Segunda Guerra Mundial do que um lugar para dormir. Ali, eu estudava e vivia o gênio do Oscar Niemeyer desenhando tudo: casas, cidades, discos voadores, foguetes interplanetários, paisagens do planeta Mongo governado pelo despótico Imperador Ming que, se a memória não me falha, era tão apaixonado quanto eu pela lindíssima Dale Arden, cujo amor por Flash era, contudo, indiscutível.

A triste passagem de um arquiteto e de um músico mexeram com esse passado de afinidades apenas desenhadas. E dão muito o que pensar. Pois o arquiteto transforma a casa, a repartição pública ou o palácio dos poderosos, essas coisas edificadas com base instrumental e dentro da irredutível lei da gravidade que prende, em desvios que libertam. Tal como no caso de Frank Lloyd Wright, outro gênio da arquitetura que eu também admirava, pois também desenhei o meu prédio de uma milha de altura sem saber que, como ensina Schopenhauer, o centro da experiência estética na arquitetura é a luta permanente entre o curvo e o reto, entre o que puxa para baixo, e a imaginação do artista que leva propositadamente para o alto em retas ou curvas.

Justo o que Oscar Niemeyer demarcou pela oposição entre o encurvado e o espiralado, típicos de sua obra, e o retilíneo — o reto humano — esse reto inexistente e talvez contrário à natureza, mas fundamental na cultura. Já na música, trabalha-se com gradações e os sons, como ensina novamente Schopenhauer, o filósofo das artes, essas continuidades rompidas ou reforçadas pelo ritmo nos penetram de modo profundo e enigmático, mesmo quando não queremos, pois, se o laço entre o mundo e a arquitetura é óbvio e racional, tal não ocorre com a música — exceto nos seus níveis mais grosseiros. De fato, sabemos que os despotismos adoram rimas e rodas, marchas e desfiles para os poderosos. Como aprendi com Milan Kundera, essas rimas são uma clara expressão da coerção e da força bruta emanada de quem gosta do poder total. Mas nesse caso a música é devorada pela política. Ademais, a música é fugaz e, sendo temporal, depende de um executor e, como os livros, tem um início, um meio e um final, demandando paciência e cumplicidade. Pois só o cantor por ela imbuído dá-lhe vida. Já na arquitetura, muda-se e constrange-se a paisagem humana de modo permanente e os poderosos sempre souberam disso desde os tempos das cavernas. Essas cavernas que se transformaram em palácios-templos monumentais dos deuses-reis e faraós.

Termino com outro artista. Ao ser perguntado por que não tirava férias e, aos oitenta e poucos anos, continuava cantando, Tony Bennett que me fez descobrir que como sempre fui um estranho no paraíso, respondeu: mas eu nunca trabalhei, por que tiraria férias?

Assim foi com o Oscar e o Brubeck: amavam o que faziam. Viveram a arte pela arte na plena certeza de que obramos todos com amor, mesmo sabendo da gratuidade imensa da vida.


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