segunda-feira, dezembro 17, 2012

Fado na cozinha - JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS


O GLOBO - 17/12


A coisa mais antiga de que eu me lembro, fui dizendo para o cineasta português Ivan Dias, que me entrevistava para um filme de memórias brasileiras de suas famílias lusitanas - a coisa mais antiga que recordo de Portugal - meu avozinho eram as cartas que chegavam de lá, principalmente aquelas com uma tarja de fumo preta nas bordas anunciando, já na capa, que alguém tinha morrido lá longe. E, em seguida, meu pai, minha mãe, meus primos, um deles estaria chorando a morte de um portuga que eles deixaram lá atrás dos montes, lá atrás das oliveiras e das pataniscas de bacalhau.

Eu me lembro que eram todos dados a rompantes dramáticos, continuei dizendo para o gajo cineasta, as portas se batiam com violência quando alguma coisa era de desagrado, se as sardinhas não ficavam fritas a contento ou o Belenenses perdia para o Benfica, e esse quadro de emoções em bruto, desavergonhadas de dizerem seus nomes, era sublinhado pela voz de Amália Rodrigues, uma cantora que eu detestava pela gritaria, pela absoluta incapacidade de entender o que ela dizia, pela tristeza daquelas guitarradas ao fundo, e que hoje, homem carente e sofrido, hoje, se me pedirem a lista com as maiores de todos os tempos, eu a encabeçaria com Amália e sua infinita beleza em dizer "Foi Deus quem deu voz ao vento".

Eu me lembro de ter ido no ombro do meu pai ver a passagem do presidente Craveiro Lopes pela Avenida Rio Branco, de ter subido no colo do meu avô para ver a passagem da imagem de Nossa Senhora de Fátima no Largo de Vaz Lobo e me lembro muito mais ainda, fui narrando ao jovem cineasta português, me lembro do galo de Évora registrando a passagem da temperatura em cima da cristaleira da sala de jantar, dos xales que todas as mulheres traziam quando voltavam do Porto, do programa do Francisco José, o cantor de "Teus olhos castanhos" na TV Tupi, e também que comíamos coisas muito diferentes das outras famílias, como aquela linguiça chamada morcela, feita de sangue e gorduras de porco - e nesse momento eu pedi licença ao Ivan Dias para me lembrar da história de uma querida namorada e sua relação de estranhamento à primeira vista e depois eterno entranhamento com a assaz dita morcela.

Eu me lembro, e disso não há qualquer vantagem pois foi há pouco tempo, que estando em Lisboa, mais precisamente numa tasca do Bairro Alto, fiz questão de apresentar à namorada, moça da mais fina família carioca da Zona Sul, aquela patativa nostálgica da minha infância portuguesa rural, a morcela de porco. Fiz a apologia do acepipe, de seu paladar exótico, perfeito para quem tinha trafegado por outras gastronomias e sabia apreciar essas delícias da cozinha rústica, feita com muita história e tradição. Eu me lembro que a moça fez menção de se levantar da mesa quando lhe foi posta a morcela no prato, uma linguiça de aspecto medonho, escura, que ameaçava explodir com todos aqueles derivados de porco espremidos dentro dela. Eu impus a autoridade lusitana, pedi com carinho que ela a experimentasse - e hoje, separados, sempre que nos encontramos, ela suspira, "hum, e a morcela, hein?", e eu nunca sei se ela gostou mesmo como disse em Lisboa, depois da primeira dentada, ou se comemora maliciosa, satisfeita de estar enfrentando gastronomias mais estreladas na mesa de outros gajos.

Eu fui dizendo assim como me vinha à cabeça, sem muitos pontos, deixando a memória num fluxo contínuo que meu terapeuta do Cosme Velho muito apreciaria, e fui falando com esse vício de linguagem de começar todas as frases com "eu me lembro", tipo, eu me lembro dos jogadores Eusébio, do Coluna, do guarda-valas Costa Pereira, eu me lembro que a única assinatura de jornal que abastecia de informações o nosso sacrossanto lar era o da Voz de Portugal, sempre com a cara do Salazar na capa, e me lembro também, como esquecer, que eu disputava o dial do rádio, querendo ouvir Cely Campello, com os primos que queriam ouvir Ester de Abreu na rádio Vera Cruz, uma emissora que irradiava de algum ponto do Rio exclusivamente programas para a colônia portuguesa.

Eu me lembro que a minha era uma casa portuguesa com certeza, que eu espremia a casca dos tremoços para eles me explodirem no céu da boca, que havia lembranças de Fátima por todos os lados, que de uma caixinha com a imagem dela saía a música "A três pastorinhos, cercada de luz, visita Maria a Mãe de Jesus", e eu me lembro que aquilo também era muito triste.

Era regado com muito azeite Gallo, saudade da terrinha e outro tanto de mais tristeza saramaga, com a exceção das festas de Natal, quando a mais velha de todos, a avó que carregava um Rosário até no nome, assumia o meio da sala, segurava a saia na altura dos joelhos e pedia a todos que estalassem o dedo para marcar o ritmo, quando então ela começava a rodar e cantar "lá em cima tinha o tiro-liro-liro, cá embaixo tinha o tiro-liro-lá", e mais não lembro, e mais na verdade preferi não lembrar ao simpático gajo cineasta, porque me veio uma doçura de fio de ovos, toucinhos do céu em cascata, uma saudade pungente de toda aquela gente, e resolvi colocar um ponto final no meu fado quase triste.
* JORNALISTA E ESCRITOR

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