domingo, dezembro 16, 2012

Esquerda, direita - JOÃO UBALDO RIBEIRO

O GLOBO - 16/12


Desculpem-me por falar na ilha tão seguidamente, mas é que acho que algumas novidades de lá apresentam certo interesse, diante da delicada conjuntura nacional. É o caso dessas graves questões de direita e esquerda, agora trazidas à baila o tempo todo, para vexatória confusão de grande parte da coletividade — e os cidadãos da ilha não são exceção. A baralhada vem logo de cima, porque o ex-presidente Lula já disse que nunca foi de esquerda, mas agora parece que as coisas mudaram e, no momento, ele é de esquerda e não abre, e quem não está com ele é de direita. Como bem observou Beto Lindo Olhar, num raro momento de exasperação, assim fica difícil até puxar o saco.

Justiça seja feita, a confusão já vem de muito longe. Lembro o tempo do finado Naninho Balaio, muito mais comunista do que Zecamunista hoje em dia. Bem verdade que Naninho não regulava bem da ideia e cansou de ir à praia de terno preto e gravata, mas ninguém pode negar que era comunistíssimo e completamente de esquerda, até porque não nasceu canhoto, mas treinou anos a fio e acabou conseguindo fazer tudo com a mão esquerda, só usando a direita em último caso. Também dizem que aprendeu a falar russo, mas ninguém entendia russo nem nunca apareceu um russo na ilha, de maneira que a controvérsia jamais foi esclarecida. E também comentam que ele fugiu para Moscou ambicionando embarcar num Sputnik, mas isso é amplamente desmentido pelo fato notório de que acabou seus dias como gerente de um estabelecimento de Nazaré das Farinhas denominado Lupanar do Moura, onde distribuía aos clientes um cartão de visitas: "Hernani M. Balaio — Lupanar do Moura Ltda. — Mulheres-Damas, buffet ou à la carte."

Nos círculos esportivos, aonde dificilmente os temas políticos são levaos, é bem possível que, entre os veteranos, a noção de esquerda se restrinja à inextinguível recordação de Chupeta, indiscutivelmente o melhor jogador de futebol que todos já viram em ação, não excluindo disso nem Pelé, nem Messi, nem ninguém. Chupeta lembrava um pouco Maradona, mas isso muito antes de Maradona, que, aliás, ainda que mal me expressando, nunca lhe chegou aos pés. Ele escondia a bola no lado de fora do pé esquerdo e saía ciscando pelo campo, até ficar cara a cara com o goleiro e aí dar um passe para quem vinha de trás. Não gostava de fazer gols, achava dar o passe mais bonito, bom de assistir. Compadre Edinho, que está aí e não me deixa mentir, e eu nos juntávamos para marcar Chupeta com toda a deslealdade possível e Edinho ainda jogava um bolo de areia na cara dele, mas assim mesmo ele passava. Sem dúvida, para esse setor de opinião, a esquerda é e sempre será Chupeta.

Que mais? Ah, sim, não podem ser esquecidas as implicações religiosas. Como não se ignora, entre as centenas de alcunhas por que se conhece o Inimigo, está a de Canhoto. Ninguém na ilha tem nada contra os canhotos, mas, por exemplo, todo mundo sabe que o feiticeiro e o mandingueiro do Mal, ao firmarem ou confirmarem seus acordos com Satanás, se persignam com a mão esquerda. Há quem alegue que Padre Ptolomeu, que era de outra paróquia mas veraneou na ilha muito tempo, dava a Bênção dos Canhotos todo ano, borrifando água benta nas crianças canhotas, para ver se elas se recuperavam. Com algumas, funcionava e Mário Gaguinho e Zenóbio Merdinha estão aí mesmo para testemunhar de viva voz, embora enfrentando pequenas dificuldades, porque ambos estão curados do canhotismo, mas ficaram gagos.

Ainda no terreno da fé, a julgar pelo que sempre se disse dos esquerdistas comunistas, eles não devem ser muito boa companhia para o cristão, porque são todos ateus hereges. Hoje em dia o pessoal não liga muito para essas coisas, mas a grande verdade, como lembrou outro dia Ioiô Ranulfo, é que o Santo Papa Pio XII, no tempo sério da missa em latim e do padre de batina, decretou que estava excomungado qualquer um que se misturasse com eles. E Zecamunista mesmo diz para quem quiser ouvir que não acredita em religião nenhuma, embora haja quem assevere que ele se garante dissimuladamente com Santo Antônio e que, apesar da foice e martelo no boné, o que usa por baixo da camiseta são umas continhas de Ogum — ele nega, mas desconversa.

Por aí se vê que grassa forte inquietação entre aqueles que, como Lindo Olhar, querem assumir a postura ideológica correta, seja para exercer o puxa-saquismo com conhecimento de causa, seja para não passar a vergonha da ignorância na frente das visitas. O que é ser de esquerda, afinal? É ser canhoto, é ser a favor do ponta-esquerda como no tempo de Zagallo e Chupeta? É ser herege, quer dizer, tem que ser ateu para apoiar o homem? É ser comunista, o homem é dos comunistas? Por que ninguém aceita ser de direita?

— Bonita pergunta! — exclamou uma voz roufenha à entrada do Bar de Espanha e ninguém precisou virar o pescoço para saber que, inesperadamente mais uma vez, ali estava Zecamunista. Cuidava-se que se encontrava em sua turnê de pôquer de fim de ano, mas, pelo visto, ele já tinha raspado o dinheiro todo dos parceiros e terminara antes do previsto. Na condição de intelectual e calejado político, certamente daria uma resposta definitiva àquelas dúvidas.

— Bonita pergunta, pois me permite um esclarecimento e um conselho prático a todos os conterrâneos que querem subir na vida — ensinou ele. — Direita no Brasil é xingamento, não pega as mulheres, nada de direita. Meu conselho é o seguinte: não interessa o que vocês pensem ou em quem votem, o importante é ser de esquerda, no máximo de centro, que por sinal é meio mal recebido nas festas do Sul do país. E ser de esquerda é fácil, é só concordar com tudo o que ele diz e faz. Como não é o meu caso, me vejo obrigado a admitir que hoje em dia sou um comunista de direita, este mundo é cruel.

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