domingo, dezembro 30, 2012
A canção que nos embala - LUIZ SÉRGIO HENRIQUES
O Estado de S.Paulo - 30/12
Há alguns anos, um artista admirável, como Chico Buarque, vaticinou o fim da canção, tal como a conhecemos em nossa geração e que muitas vezes, composta com invulgar talento e coragem cívica, com real espírito de "engajamento", nos ajudou a atravessar menos penosamente as agruras do regime autoritário, a tal "página infeliz da nossa História". Acostumamo-nos a um nível de lirismo na canção popular que não raro fazia com que ela desbordasse do terreno daquilo que é meramente agradável e adquirisse dimensão propriamente estética - a dimensão de uma arte crítica e não oficialista, como deve ser toda arte que se preze, se bem que, como insinuava a corrosiva (auto)ironia dos tropicalistas, uma certa função consolatória naquele tipo de música também estivesse presente, enquanto esperávamos, cada qual à sua maneira, o carnaval chegar.
Eram tempos em que podíamos visualizar, socorridos pela imagem forte, a pátria-mãe ser subtraída em "tenebrosas transações", o que - juntamente com o fim da canção apregoado pelo Chico - talvez não possamos mais fazer agora, em tempos de democracia política e de democratização social, a não ser que se queira receber, em troca, a acusação não menos forte de udenismo, que seria o traço distintivo de uma classe média ressentida e deslocada do poder político com o advento da esquerda petista ao poder a partir de 2003.
Não importa muito que o observador se coloque numa posição rigorosamente constitucional e que, por exemplo, nunca tenha promovido ou promova palavras de ordem como "Fora, Lula" ou "Fora, Dilma", quando, ao contrário, antes ouvimos um temerário "Fora, FHC". Não importa, também, que o mesmo observador condene, ainda hoje e à distância de tantos anos, manobras de pequena navegação, como a alteração das regras do jogo em benefício imediato de quem está no poder - referência evidente à emenda da reeleição presidencial, equívoca por si mesma, independentemente da compra ou não de votos de deputados da periferia do sistema.
Nada disso importa: o certo é que, com todas essas ressalvas, quem aponta para a necessidade de obediência rigorosa aos princípios de legalidade e impessoalidade na administração da coisa pública, muito especialmente por parte da esquerda política, pode ver-se alcançado pela acusação genérica de participar objetivamente, querendo ou não, de uma conspiração feroz, em cujo vértice estaria nada menos do que um dos Poderes da República, de resto o mais "aristocrático" deles, contra lideranças populares sem paralelo na História do País.
Num outro tempo, era preciso estar embriagado ou muito louco - dizia o poeta Chico - para contestar e botar defeito nos feitos e conquistas do Brasil Grande, aquele mesmo Brasil que nos convidava, autocraticamente, a amá-lo ou deixá-lo de uma vez por todas. Hoje, no entanto, com os recursos inestimáveis da esfera pública democrática, cabe raciocinar serena e pacientemente em torno de vícios da esquerda no poder - ou melhor, de uma certa esquerda no poder - que parecem repetir-se de modo incômodo, tais como, para indicar dois traços, uma autoavaliação hiperbólica do próprio desempenho à frente do País e um hábito mental que leva a pretender identificar, sem restos, o povo e seu líder máximo.
Na história da esquerda, a mencionada hipérbole se manifestou - e volta a se manifestar, de modo até farsesco - como tendência ao culto à personalidade. Vício terrível, que não atinge somente a imensa massa de deserdados, hoje beneficiada por programas relativamente potentes de transferência de renda, mas alcança também intelectuais efetivamente sofisticados, capazes, no entanto, de arriscadamente desvincular tais programas de toda uma época inaugurada e propiciada pela Carta de 1988. De fato, nesse documento crucial, em torno do qual cabe cotidianamente construir um "patriotismo" inédito entre nós, se expressou um avançado consenso social-democrata, que permitiu, entre outras políticas sociais justas e progressistas, a generalização da previdência rural e a assistência aos idosos e aos deficientes, num combate "substantivo" à pobreza e à indigência efetivamente encetado nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
Por seu turno, a pretensa identidade entre o povo e o líder supremo empobrece a livre dialética democrática e tendencialmente a suprime, ao retirar, em perspectiva, a "legitimidade das partes" que combatem lealmente no campo comum da democracia e elaboram distintas e até mesmo antagônicas visões do bem comum. Produz-se, assim, uma concepção de hegemonia que dispensa o tema do pluralismo, bem como promove táticas "transformistas" de decapitação das forças conservadoras, destas assimilando, contraditoriamente, métodos de atuação e muitas vezes os próprios objetivos estratégicos, como é possível ver na presente onda de restauração de figuras e questões do velho nacional-desenvolvimentismo, inclusive na versão militar. Sem falar da vontade de levar de roldão, ou da ilusão de que isso seja possível, os delicados mecanismos de freios e contrapesos que marcam o moderno Estado Democrático de Direito.
Caetano Veloso, outro protagonista dos tempos de ouro da canção e que, como poucos, há décadas consegue dar forma a alguns dos nossos dilemas mais decisivos, certa feita tomou como metáfora do País os que dirigiam "motos e fuscas", avançando os sinais vermelhos e perdendo os verdes. Por isso seríamos uns boçais, concluía ferinamente. Podemos tomar essa ideia aguda como índice dos desvios institucionais - e, logo, dos limites hegemônicos, apesar da sequência de vitórias eleitorais - da esquerda dominante, ao subestimar o grande sinal verde para as reformas sociais representado pelo respeito pleno à democracia política.
Algum dia deixaremos de desafinar em tal sentido negativo?
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