sexta-feira, novembro 30, 2012

Viver impregnado de teatro - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

O ESTADÃO - 30/11


Quinze dias atrás, no Nordeste, recebi pelo iPhone (carrego o de minha filha, quando viajo) uma foto que me deixou contente. Enviada por Luciana Savaget, mostrava Alcione Araújo, Luciana e eu sentados na plateia da Jornada Literária de Passo Fundo, Rio Grande do Sul. Que gracinha, a Luciana, pensei. Uma foto tão gostosa! Não tinha lido o texto do e-mail. Dizia: "Um dos tenores se foi. Alcione acaba de morrer." Como? Alcione morto? Um sujeito forte, troncudo, com 67 anos, em pleno viço (esta é do interior)! Marina Colasanti, naquele estilo que todos gostaríamos de ter, definiu Alcione: "Era dois, esse homem, porque o corpo de ossos largos e o olhar seguro lhe garantiam um jeito taurino de ser, enquanto a alma delicada e a ternura do sorriso lhe conferiam uma finura de donzela".

Por um largo período, a cada dois anos, nos encontrávamos no palco da Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo. Alcione Araújo, Julinho Diniz e eu. Por uma semana, à tarde e à noite, por horas coordenávamos palestras, mediávamos debates e, quando não vinham perguntas do público, inventávamos, criávamos e interagíamos alegremente com a plateia. Porque aquela é uma audiência única no Brasil, são pessoas que já leram os autores convidados e as questões são pertinentes. Alcione, robusto, voz de baixo tenor, severa, impositiva. Julinho, voz suave, físico mediano. Eu, com esta voz esquisita que me foi dada.

Então, um dia, alguém do público nos apelidou de os "três tenores", por inspiração (e ironia) de Pavarotti, Carreras e Plácido Domingo. Alcione era o único que tinha voz digna do canto. Uma vez, até cantamos uma sátira. O Haddad era ministro da Educação, tinha prometido ir à Jornada, não foi. A musiquinha era: Haddad, Haddad por que você não veio à cidade?

No palco, Alcione era imponente. Sério, sério e, de repente, soltava uma coisa engraçadíssima, espantava. Insuperável no momento de comentar as falas antes de abrir para as perguntas do público. Tendo estudado engenharia, depois teologia e filosofia, conhecedor de sociologia, fazia a análise certeira. Quantas vezes não falou melhor do que o palestrante? Dominava palco e plateia. O que se podia esperar de um homem com físico dominador, romancista, dramaturgo, cronista (O Estado de Minas) ensaísta, roteirista de cinema e de televisão? Autor de 13 peças teatrais e de 14 roteiros cinematográficos de longa-metragem.

Ao fim de cada noite no circo da Jornada (ela é realizada debaixo de uma lona gigantesca, que abriga 6 mil espectadores), saíamos pela balada passo-fundense, escassa, mas com um e outro restaurante com excelente massa e bom vinho. Certa ocasião, celebramos o aniversário de Frei Betto e o chef, animado e feliz, nos serviu paletas de cordeiro memoráveis, ali vimos o dia nascer. Porque Alcione engatava um caso atrás do outro, causeur incansável e ninguém queria perder a história seguinte. Depois, Julinho Diniz se afastou das coordenações e para o lugar dele veio Luciana Savaget.

A história da Jornada caminhava, abria-se. Luciana, escritora de infantis, jornalista (faz documentários culturais na Globo), tornou-se animadora e volta e meia nos roubava a cena. Uma vez (ainda época da novela O Clone), ela, inovadora e louca, entrou no palco com uma burca, como personagem misteriosa. Foi assunto dias e dias, até se revelar sua identidade. Saiu Julio, chegou Luciana, os "tenores" continuaram existindo.

No e-mail, ela contou que Alcione tinha acabado de morrer em Belo Horizonte, de enfarte fulminante. Com sua namorada Dulce, um amor de maturidade, ele tinha passado por Ouro Preto, pelo Fórum das Letras, promovido anualmente por Guiomar de Grammont, e estava em um hotel da Savassi, quando partiu. Um pensamento que me acompanha voltou. Um dos problemas da idade é perceber que o campo à nossa volta vai ficando deserto, se esvaziando de amigos.

Alcione disse um dia: "Como alguém pode viver sem escrever? Vivo impregnado de teatro, bêbado de literatura, encharcado de cinema, grávido de filosofia e gratificado por exercer o que, para mim, é a melhor profissão do mundo: a que permite ganhar a vida com prazer e oferecer ao leitor/espectador vivências do que ele não viveu". Como será sem ele no palco na próxima Jornada de Passo Fundo, ano que vem?

Também Hernani Donato partiu. Estava com 90 anos e era uma delícia ouvi-lo falar na Academia Paulista de Letras. Sabia tudo sobre a história do Brasil e a de São Paulo. Raconteur delicioso, erudito. Falava pausado, repleto de informações e uma memória privilegiada. Tinha a voz mansa e trazia fatos à margem, anedotas, casos, revirava a história do avesso. Trabalhamos juntos vários anos na Editora Abril. Seu romance Selva Trágica, adaptado ao cinema por Roberto Farias, tornou-se um filme clássico. Nos seus textos, na sua narrativa, história não era chata, acadêmica, pesada, era viva, agitada, carne e sangue. Como foi injusta a mídia. Falou-se tão pouco de Hernani. Ou é ignorância? Onde estão nossos críticos e ensaístas? Mais: será, mas será mesmo que é impossível enganar a morte? Ela é tão inteligente e esperta assim? Ou Deus a protege?

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