sábado, novembro 24, 2012

Limites de um certo jardim - ELIANA CARDOSO


O Estado de S.Paulo - 24/11


"Lisboa não é mais", escreve Voltaire comovido pelo amontoado de mulheres e crianças mortas no terremoto de novembro de 1755: "Que crime, que falta cometeram esses meninos

A sangrar, esmagados sob o seio materno?"

E termina o Poema Sobre o Desastre de Lisboa com versos dirigidos a Deus:

"Trago-lhe, único rei, ser infinito,

Tudo o que não tens na tua imensidão:

Os defeitos, as lamentações, o mal e a ignorância.

E poderia ainda ter somado a esperança".

Como reconciliar o mal e o sofrimento de inocentes com a bondade e a onipotência de Deus? Para o politeísmo do mundo antigo, existia uma resposta simples: alguns deuses eram do mal. Mas para o monoteísmo, o sofrimento de inocentes desafia a lógica.

Os dois primeiros capítulos do Gênesis oferecem duas explicações diferentes. No primeiro, a matéria simbólica do mal existia antes da criação do mundo. "A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas." O vazio, o abismo e a escuridão são a matéria simbólica do mal e lá estavam antes do "Haja luz" com que Deus trouxe ordem ao caos preexistente.

Em contraste com essa interpretação, a teologia dominante no tempo do francês Voltaire (1694-1778) difundia a ideia de que Deus criara o mundo do nada. A explicação para a existência do mal se encontraria no segundo capítulo do Gênesis, em que o homem, violando o mandamento de Deus, teria com seu pecado aberto portas e janelas para catástrofes, desditas e infortúnios.

Mas essa solução permanece insatisfatória, diante do argumento de que a bondade de Deus, sua onipotência e a existência do mal formam uma trindade impossível. Se o mal existe, Deus ou não é bom ou não é onipotente. Se não o é, o universo segue a ordem da natureza e a razão exige a substituição da ordem religiosa por uma ordem social, como Voltaire ilustraria em Cândido, ou o Otimismo (introdução de Michel Wood, notas de Theo Cuffe, tradução de Mário Laranjeira, Penguin Companhia).

Graças a Voltaire, a destruição de Lisboa teve consequências poderosas sobre a forma como separamos o mal natural do moral. E a interpretação do mal estava presente na discussão portuguesa sobre o significado do terremoto: mensagem divina ou fenômeno da natureza?

Malagrida, um jesuíta italiano, pregava o abandono da reconstrução e o retiro espiritual para aplacar a ira divina. Do outro lado, apoiando-se em explicações naturalistas, Pombal, o todo-poderoso primeiro-ministro, tratou de dispor dos cadáveres para evitar a peste, distribuiu alimentos e colocou a milícia na rua. Garantiu a distribuição do jornal, pois, sem informações confiáveis, rumores e especulações poderiam impedir a volta à normalidade. Malagrida morreu num auto da fé. Pombal venceu.

Mas, se Pombal e Voltaire queriam pôr fim à interpretação de Deus como portador de função pública, nem por isso acabaram com os debates sobre a providência divina. Gottfried Wilhelm Leibniz, defensor da corrente de pensamento conhecida como o otimismo filosófico, afirma - nos Essais de Theodicée Sur la Bonté de Dieu (importado, GF, R$ 38,20) - que Deus não iria criar um mundo perfeito, pois é ele o único ser perfeito. Sabendo que o mundo seria necessariamente imperfeito, criou "o melhor de todos os mundos possíveis". Ocorre, entretanto, que nossa perspectiva limitada não alcança os motivos de seu funcionamento. Essa conclusão coincide com a desenhada por Alexander Pope no Essay on Man and Other Poems (importado, Dover Thrift, R$ 8,60) que argumenta que tudo o que é está certo. O que percebemos como ruim faz parte da harmonia universal que escapa à nossa compreensão.

Ao contrário, o poema sobre o desastre de Lisboa vê como inexplicável o sofrimento causado, por exemplo, por terremotos, e rejeita o otimismo filosófico. Jean Jacques Rousseau reagiu com fúria ao poema. Acusou Voltaire de atacar a providência divina e construiu um argumento baseado na afirmação de que as cidades são centros de corrupção. Puxando a sardinha para sua brasa, pois pregava o mito do bom selvagem, afirmou que Deus nos criou para a vida simples do campo e harmonizou o mundo físico e o moral, usando os terremotos para nos mostrar onde e como devemos viver.

A resposta de Voltaire - que tomou a forma de Cândido - demorou três anos para aparecer. Ele atravessava um período de tristeza e ansiedade depois da morte da Sra. du Châtelet, uma mulher rica e inteligente, em cujo sítio Voltaire morava lá se iam 15 anos. Sim, ela era casada. Mas... Com marido compreensivo no país que inventou a tradição do ménage à trois.

A morte da Sra. Du Châtelet marca o início do período difícil durante o qual - deixando de lado o terremoto de Lisboa e a eclosão da guerra dos sete anos - Voltaire enfrentou uma estada frustrante na Prússia e cinco semanas na prisão até obter permissão para viver em Genebra. Em 1759, comprou Ferney (uma propriedade na fronteira franco-suíça) e publicou Cândido, que, circulando ilegalmente, obteve sucesso instantâneo e condenação imediata. Os temas da novela giram em torno da irrelevância da metafísica abstrata, da realidade do mal e da necessidade do trabalho para alívio do sofrimento.

Cândido - estudante e admirador de Pangloss, um filósofo dedicado à demonstração da verdade da crença de Leibniz - ama Cunegunda, filha do Barão Thunder-ten-tronckh, que o expulsa da Westfalia, quando o pega dando um beijo na amada. Forçado a se tornar soldado no Exército búlgaro se envolve em terrível batalha e alcança a Holanda, onde reencontra Pangloss, agora mendigo com o nariz carcomido pela sífilis, que pegou de Paquette, camareira no palácio do Barão. Tudo bem: se Colombo não tivesse trazido a sífilis da América, o Velho Mundo não teria conhecido o chocolate. Pangloss conta a Cândido que Cunegunda fora violada e estripada por soldados búlgaros.

Embarcam então num navio que naufraga, mas chegam a Lisboa a tempo de presenciar o terremoto e um auto da fé, em que vítimas são queimadas em fogo brando para evitar que a terra volte a tremer. Uma velha salva Cândido e o leva ao encontro de Cunegunda, que fora vendida a um mercador judeu, que divide seus favores com o grande inquisidor. Ameaçado, Cândido mata os dois. A velha planeja a fuga para Cádiz, onde Cândido é contratado para lutar contra os jesuítas do Paraguai.

A bordo do navio, a velha conta sua história de desgraças e confessa que, tendo pensado cem vezes em se matar, não o fez, porque partilha da mais ridícula das fraquezas da humanidade: ama a vida. "Pois existe algo mais tolo do que acariciar a serpente que nos devora até que ela nos tenha comido o coração?"

Essa velha é a personagem que menos sofre com as farpas satíricas de Voltaire, porque voltada para ação, não se deixa paralisar pela indiferença filosófica e oferece contrapontos à inépcia de outros personagens. Vítima de violência, estupro e escravidão, aprendeu a sobreviver e não exagerar seus ferimentos. Não guarda ilusões e, ao afirmar que continua amando a vida, articula um dos temas centrais de Voltaire: a vontade absurda, mas invencível que temos de viver.

Quando o grupo chega a Buenos Aires, Cunegunda se torna amante do governador. Alertado de que estão sendo perseguidos, Cacambo, servo de Cândido, sugere que, ao contrário do planejado, se unam aos jesuítas do Paraguai.

Ao ver dois macacos perseguindo duas meninas nuas a lhes mordiscar as nádegas, Cândido atira nos macacos e as duas meninas choram e lamentam a perda dos amantes. Em seguida, Cândido e Cacambo escapam dos Orelhinhas - que planejavam cozinhá-los para o jantar - e chegam ao Eldorado. Como Cândido não pode viver sem Cunegunda e Cacambo tem um espírito inquieto, deixam aquele paraíso com cem ovelhas carregando tesouros. Após cem dias e com apenas dois carneiros, encontram um pobre e torturado escravo e Cândido considera se deve renunciar ao otimismo de Pangloss. Cacambo pergunta: "O que é otimismo?". Responde Cândido: "É a mania de dizer que tudo está bem quando se está mal".

As viagens prosseguem. Cândido contrata um erudito pobre chamado Martinho para acompanha-lo à França. Na Inglaterra, presenciam a execução de um almirante condenado por não ter mandado matar gente em número suficiente. Chegam a Veneza e Cândido tenta refutar o cinismo de Martinho, apontando para um padre teatino e uma menina que andam juntos e felizes. Mas a mulher é Paquette, que se tornou prostituta a serviço de um padre, um oficial e um monge.

Apesar do pessimismo e sagacidade de Martinho, seria um erro escutar na sua voz a de Voltaire. Martinho não se revolta com injustiças, acredita que o diabo governa a existência humana, a miséria é inevitável e fúteis os esforços para reduzi-la - fatalismo que o aproxima do otimismo filosófico. Por que trabalhar para prevenir a guerra e a doença, se essas coisas continuarão a existir? Voltaire, ao contrário, favorece o ativismo. Sim, o mal existe, a providência divina é ininteligível, a metafísica, irrelevante, mas precisamos identificar as fontes do sofrimento remediável.

Em Constantinopla, Cândido reencontra Cunegunda, que se tornou feiíssima. Mesmo assim ele se casa com ela e compra uma pequena fazenda onde todos, insatisfeitos, se perguntam se o tédio não é ainda pior do que as torturas anteriores. Um turco lhes diz que só o trabalho impede os três grandes males da humanidade: o tédio, o vício e a pobreza. Martinho observa: "Trabalhemos sem arrazoar; é o único meio de tornar a vida suportável". Pangloss ainda filosofa, provando que tudo acabou como deveria. Cândido aprova, mas tem a palavra final: "Bem dito, mas é preciso cultivar nosso jardim".

Na fazenda de Cândido, o trabalho combate os efeitos perniciosos do tédio e baniram-se hierarquias destrutivas de instituições políticas e religiosas. Embora a solução possa não funcionar em grande escala, talvez permita certo grau de autonomia e paz. E o leitor termina como o protagonista, provisoriamente esperançoso, mas desconfiado do próprio julgamento. Afinal, uma postura mais esperançosa violaria o tom satírico do conto.

A sátira funciona também ao nível formal ao zombar da credulidade dos leitores de ficção e escolher uma estrutura narrativa que depende dos gêneros populares como os contos de fadas e as narrativas picarescas. Abandona o realismo a favor de hipérboles para sublinhar o absurdo e estende a ausência de realismo a personagens estereotipados. Cândido é uma paródia do herói do Bildungsroman. Embora ridículo na sua credulidade, é capaz de reconhecer o próprio desejo e a idealização de Cunegunda lhe permite perseguir a felicidade. No diálogo final, o herói ingênuo parece distanciar-se do otimismo puro de seu mentor.

Voltaire nos propõe mais do que a demonstração da existência do mal no mundo criado por uma divindade benéfica. Catástrofes naturais aparecem na narrativa, mas não só são apenas três (a tempestade na costa de Portugal, o terremoto de Lisboa e a peste da Argélia), como de pequena monta quando comparadas aos horrores criados pelo homem. A pergunta que ele nos deixa é como homens bons devem viver num mundo mau.

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