terça-feira, novembro 20, 2012
Ayres Britto fará falta - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S.Paulo - 20/11
Foi uma homenagem a uma convicção sustentada durante longo tempo. Na última sessão de que participou no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há uma semana, o seu presidente, Carlos Ayres Britto, que exercia o cargo em virtude de sua condição de titular do Supremo Tribunal Federal (STF), viu aprovada uma ideia que trouxera consigo para o colegiado - a de fazê-lo acompanhar os processos que envolvem o exercício da liberdade de imprensa. Criado para aperfeiçoar o sistema judiciário brasileiro, o CNJ, no entender de Britto, "não podia deixar de se interessar" pelo modo como as relações entre a imprensa e o sistema democrático "são cotidianamente equacionadas" pela Justiça brasileira.
O interesse tomará a forma de uma comissão denominada Fórum Nacional do Poder Judiciário e Liberdade. Presidido por um membro do CNJ, dele farão parte outros conselheiros, representantes da magistratura federal e estadual, da OAB e de entidades da área da comunicação. Evidentemente, Ayres Britto deixa claro, o Fórum não terá "nenhuma interferência na autonomia técnica dos magistrados" no exame de litígios que envolvam a liberdade de expressão. Ao criar um banco de dados desses julgamentos, o que lhe permitirá fornecer informações objetivas aos tribunais para suplementar a tomada de suas decisões, o Fórum poderá verificar, de acordo com o seu inspirador, o cumprimento da sentença do STF que extinguiu, por inconstitucional, a Lei de Imprensa do regime militar.
Numerosos membros da alta magistratura decerto têm, ou tiveram a seu tempo, a mesma inabalável convicção de Ayres Britto sobre o "vínculo umbilical", como diz, entre o direito à informação e a livre manifestação do pensamento, de um lado, e a democracia, de outro. Mas dificilmente algum deles o terá superado em matéria de zelo - juridicamente alicerçado - em defesa da liberdade fundamental nas sociedades civilizadas. Quanto mais não fosse, o seu voto pela eliminação do entulho autoritário configurado na Lei de Imprensa deixou cravada na pedra uma passagem luminosa da trajetória da mais alta Corte do País - e da presença, nela, de um ministro que não inspirava expectativas dignas de nota quando o presidente Lula o nomeou em 2003 para a primeira vaga que se abria no seu mandato.
Aposentado compulsoriamente no domingo, quando alcançou a idade-limite de 70 anos, esse sergipano de Propriá havia ocupado algumas das mais respeitadas funções no Judiciário de seu Estado, escrito um punhado de livros de poesia - e tentado, em vão, eleger-se deputado federal pelo PT, ao qual esteve filiado por 18 anos. Assumiu a sua cadeira no STF praticamente dois anos antes de um acontecimento que mudaria a sua vida e a dos pares de quem se despediu na semana passada dizendo que o Judiciário está "transformando o País". Foi a entrevista em que o então deputado Roberto Jefferson denunciou o esquema de compra de apoio parlamentar ao governo Lula, fazendo rebentar o escândalo do mensalão. Nos breves sete meses em que lhe tocou presidir o Supremo, a contar de abril último, Ayres Britto teve papel decisivo para impedir que o julgamento do caso ficasse para o dia de São Nunca.
Durante os trabalhos, impressionou pela mansidão o grande público que não tinha acesso aos bastidores da Corte para saber que ele punha a placidez a serviço da firmeza a fim de que nada tirasse do prumo o fecho da mais importante ação penal da história do STF. A expressão "algodão entre cristais", tanto usada para descrever a sua atitude diante da troca de desaforos entre os ministros Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, não conta tudo. O exercício do apaziguamento em nenhum momento o levou a abrandar a sua preocupação primeira com a estrita obediência à Constituição. "O Supremo", ensinou, "interfere mais e mais no curso da vida, como deve ser, como fiel intérprete de uma Constituição concretista (que não se atém ao enunciado de princípios gerais e abstratos)."
A lhaneza, a contenção do ego em um ambiente que não se caracteriza propriamente pela modéstia de seus ocupantes tampouco o inibiram de disparar na despedida uma ardida lição aos remanescentes: "Derramamento de bílis não combina com a produção de neurônios". Fará falta.
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