quinta-feira, novembro 15, 2012
A violência urbana, da necessidade ao desejo - EUGÊNIO BUCCI
O Estado de S.Paulo - 15/11
Economia melhora, o crime cresce - com esse título, reportagem de Murillo Camarotto, publicada no caderno Eu & Fim de Semana, do jornal Valor Econômico, de sexta-feira passada, demonstra de modo irrefutável o que os governos no Brasil detestam admitir: a miséria, a pobreza e a chamada exclusão social não são as causas principais do aumento das taxas de homicídios, de assaltos e da violência generalizada que espalha medo nas cidades brasileiras. Levantamento realizado pelo Valor mostra que, entre os dez Estados brasileiros que mais reduziram a desigualdade social de cinco anos para cá, seis pertencem simultaneamente a outro grupo, este bem menos edificante: o grupo dos dez onde a violência mais cresceu. Os dados e os estudos apresentados pela reportagem desmascaram a tese de que a necessidade extrema seria a única responsável pelo fenômeno a que os sociólogos dão o nome de "criminalidade urbana".
A notícia não é exatamente nova. O estado de necessidade, que viola todos os requisitos da dignidade humana, constitui a pior violência que se pode cometer contra alguém. Há décadas, no entanto, já sabemos que o estado de necessidade não é a causa principal da violência. Ele é inaceitável, totalmente inaceitável, mas não porque cause aborrecimentos aos de cima; é inaceitável porque não se pode conviver mais com a miséria. É inaceitável só por isso, sem precisar de nenhum outro interesse pragmático para ser mais inaceitável do que já é. Não obstante, o pensamento político brasileiro, na média, estabelece um vínculo falso entre uma coisa e outra. Aqui, os demagogos difundem a crença fácil de que a necessidade é a mãe da violência. A maldade humana seria um mito, só o que existe é a perversidade das condições materiais de vida.
Conclusão: a culpa pela falta de segurança pública seria do "sistema". Pronto. Políticas realistas de segurança pública não passariam de meros paliativos, pois todo o mal reside nas diferenças entre ricos e pobres. Nivele-se a sociedade e a violência cessará, promete a demagogia.
Mais que ilusória, essa mentalidade é deletéria. Ela se diz "de esquerda", mas é apenas obscurantista: quer condenar à fogueira quem não lhe diz amém. Em todo tiroteio vê um reles produto da exclusão social. Do mesmo modo, quando se descobrem corruptos e corruptores refestelados no partido, e se esse partido vem a ser o partido "do bem", ela assevera que a responsabilidade não é dos corruptos e corruptores, mas da malévola e elitista legislação eleitoral. Outra vez a culpa é do "sistema". Todo criminoso, desde que pobre ou do partido "do bem", é sempre uma vítima. Na dúvida, condene-se o sistema. Condene-se o tribunal.
Assim, o discurso que diz que a violência é produto da necessidade dos mais pobres embute um outro discurso, mais complicado, segundo o qual a corrupção "do bem" é uma necessidade da luta política. É por isso que os demagogos insistem em falar da necessidade e se recusam a falar de desejo. Eles não conseguem explicar por que a imensa maioria dos pobres é despretensiosamente honesta, assim como não explicam por que tantos milionários, incluindo os que enriqueceram misteriosamente na política, à direita e à esquerda, são bandoleiros. Dizem que os policiais se deixam subornar porque recebem salários ultrajantes (seriam corruptos "por necessidade"), porém não são capazes de estipular qual a faixa salarial que separa a lisura da bandalheira. Quanto teria de ganhar um sargento para ser íntegro? A demagogia não sabe dizer.
Acontece que a corrupção, assim como a violência urbana, não decorre da faixa de renda de cada um. Os demagogos sabem disso, mas fingem não saber. Sabem que há parlamentares e ministros que prevaricam durante o dia e depois se justificam à noite, em silêncio, com a cabeça no travesseiro, dizendo a si mesmos que também ganham pouco, que precisam guardar algum para a aposentadoria, para os familiares, que se estivessem na iniciativa privada teriam uma remuneração muito superior, que não é justo, que precisam garantir-se para as próximas eleições, que terão despesas com advogados, ou mesmo com uma fuga em nome da causa.
Demagogos endinheirados se perdoam em nome da necessidade, não do desejo. Eles também se consideram vítimas do sistema e, do alto dessa presunção, subornam assessores, policiais e cabos eleitorais. Alegam que combater o sistema não é barato. Acreditam ser o expediente do crime imprescindível para se fazer política, assim como acreditam que um assalto à mão armada seja uma saída contra a fome. Os demagogos não percebem que se converteram no próprio sistema que prometiam combater. Não têm como aceitar o próprio desejo, pois, neles, o desejo é o desejo de se fundir no sistema que prometiam combater, o desejo é o desejo de estar do outro lado.
Por essas e por outras, a mentalidade demagógica (autoritária) que proclama a apologia dos "crimes justos" - contra vidas humanas ou contra o dinheiro público, tanto faz - é inepta para enfrentar o desafio da segurança pública. Ela não entende que quando um adolescente mata outro, da mesma idade, para lhe arrancar um par de tênis, não mata por necessidade, por ter os pés descalços, mas por desejo de desfilar com aquela marca, assim como o corrupto é corrupto não por necessidade partidária, mas porque deseja uma gravata de grife, um iate cafona, a aprovação de seu chefe ou a bajulação dos carentes.
A violência que cresce em São Paulo, em mais uma onda cíclica, não vem de baixo, "dos pobres", nem da necessidade. Vem do alto. Em sua face mais visível, é verdade, ela brota do desejo de quem só tem um revólver na mão para se fazer notar. Mas em sua estrutura, em seu motor histórico, ela vem do desejo dos de cima que, na sua ambição, degradam a polícia, distribuem armas, concentram renda e sonegam direitos. O "sistema", nesse caso, está mudando de mãos. E tem nome e endereço.
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