domingo, novembro 11, 2012

A Selic e os superávits primários - AFFONSO CELSO PASTORE


O Estado de S.Paulo - 11/11


Uma pessoa decide tomar um empréstimo de dez mil reais, destinando cinco mil para aumentar seus gastos correntes, e cinco mil para comprar um certificado de depósitos. Tem uma dívida bruta de dez mil reais, porém uma dívida líquida de apenas cinco mil reais. Ocorre que paga sobre o empréstimo uma taxa de juros de 10% ao ano, e recebe no certificado de depósitos um rendimento de 5% ao ano. A taxa de juros sobre a sua dívida bruta é de 10% ao ano, mas a taxa de juros sobre a sua dívida líquida é de 15% ao ano. Se essa pessoa cometer o erro de aumentar sua dívida bruta em mais cinco mil reais para comprar mais cinco mil reais em certificados de depósitos, terá mantido sua dívida líquida constante. Mas agora a taxa de juros implícita sobre a dívida líquida terá se elevado para 20% ao ano (o gasto de juros de mil e quinhentos reais sobre a dívida bruta menos a receita do certificado de depósitos de quinhentos reais, em proporção à dívida líquida de cinco mil reais). Nenhum ser racional faria esta operação.

Mas os países são diferentes. No Brasil, o governo acumula dívida pública bruta quer para atender à necessidade de financiamento do setor público - o déficit nominal -, quer para comprar ativos. Dois deles - os mais importantes - são as reservas internacionais e os créditos junto a instituições financeiras oficiais, como os repasses ao BNDES. Como estes são ativos líquidos (o que é certamente verdadeiro no caso das reservas), podem ser deduzidos da dívida bruta, gerando o conceito de dívida líquida, que é o único relevante para aferir a solvência do governo.

Mas, como no exemplo acima, quanto maior for a diferença entre a taxa de juros pagos sobre a dívida bruta e a taxa à qual são remunerados os ativos, e quanto maior for o tamanho dos ativos em relação à dívida líquida, maior será a taxa de juros implícita da dívida líquida.

Segundo os cálculos do Banco Central, a dívida pública brasileira líquida está, atualmente, em 35% do PIB. No gráfico 1 está a evolução dos dois ativos mencionados acima. Em 2006, os créditos contra instituições financeiras oficiais representavam 0,5% do PIB, e o estoque de reservas chegava a 7,7% do PIB, mas esses números cresceram: atualmente, os créditos contra instituições financeiras somam 8,5%; e as reservas, 17,5% do PIB. Os ativos totais representam 26% do PIB, enquanto a dívida líquida é de 35% do PIB. Não há dúvidas de que é grande a proporção dos ativos em relação à dívida líquida. Por outro, os créditos contra o BNDES rendem a TJLP, e, segundo os dados do relatório sobre a administração de reservas, do Banco Central, estas rendem uma taxa de juros inferior a 1% ao ano. Ambas são bem mais baixas do que a taxa Selic, que é a menor das taxas de juros sobre a dívida bruta. Não poderia haver surpresas, portanto, que a taxa de juros implícita da dívida líquida, no Brasil, fosse superior à taxa Selic.

No gráfico 2 são superpostas a taxa de juros implícita da dívida líquida e a taxa Selic. Em 2006, ambas situavam-se em 18% ao ano, e desde então a taxa Selic veio caindo e chegou, em setembro de 2012, a 7,25%. Já a taxa de juros implícita da dívida líquida oscilou em torno de um patamar estável, e está, atualmente, em 15,6% ao ano. Salta aos olhos que, enquanto a taxa Selic declinou continuamente, a taxa implícita da dívida líquida manteve-se oscilando em torno de um patamar estável. O descolamento entre as duas taxas deve-se à acumulação de ativos e à diferença entre as taxas de juros sobre a dívida bruta e sobre os ativos.

A equação de dinâmica da dívida nos ensina que, para estabilizar a dívida líquida em relação ao PIB, tem de ser gerado um superávit primário dado pelo produto da relação dívida/PIB pela diferença entre a taxa real de juros e a taxa de crescimento econômico. Admitindo que a taxa de inflação se mantenha (como tem ocorrido) em 5,5% ao ano, a taxa real de juros sobre a dívida líquida está, atualmente, em 10% ao ano (15,6% da taxa nominal sobre a dívida líquida menos 5,5% da inflação). Admitindo (com otimismo) um crescimento econômico de 4% ao ano, e uma dívida líquida de 35% do PIB, o superávit primário que atualmente estabiliza a relação dívida/PIB é de 2,1% do PIB. É um superávit primário menor do que a "meta" de 3,1% do PIB, mas ainda assim muito maior do que é apontado por exercícios nos quais é ignorado o efeito gerado pela acumulação de ativos e pelo diferencial entre as taxas de juros sobre a dívida bruta e sobre os ativos.

Em setembro, os dados do Banco Central mostraram que o superávit primário dos últimos 12 meses atingiu 2,3% do PIB, muito próximo da taxa calculada acima. A conclusão é de que, neste momento, praticamente não há mais espaço para a sua redução. O que esperar daqui para a frente?

A cada mês vence uma parcela de dívida contratada no passado, e como toda a estrutura de taxa de juros de mercado veio declinando, no processo de rolagem uma dívida mais barata irá gradualmente substituindo uma dívida mais cara. A tendência é que a taxa de juros da dívida bruta decline. Mas essa é uma equação incompleta, porque ignora a acumulação de ativos.

O governo vem forçando as instituições financeiras oficiais a ampliar os empréstimos, o que o obriga a capitalizá-las, tendo de realizar novas transferências. Segundo, recentemente o câmbio passou a ser utilizado como um instrumento para elevar a competitividade da indústria, e o Brasil migrou para o regime de câmbio fixo. Como após a adesão ao câmbio fixo os fluxos de ingressos têm sido praticamente nulos, o Banco Central não precisou realizar compras no mercado à vista, o que estabilizou as reservas.

Parte desse comportamento vem do encolhimento dos ingressos para a bolsa. O mau trato dado às ações vem deprimindo seus preços, gerando a queda nos ingressos. É o caso do subsídio ao preço da gasolina deprimindo a cotação das ações da Petrobrás; da ingerência na governança da Vale do Rio Doce acentuando a queda de suas ações provocada pela redução dos preços do minério de ferro; dos efeitos negativos sobre os preços das ações das geradoras de energia elétrica, devido à confusão na renovação das concessões; e da pressão sobre os bancos, reduzindo as cotações de suas ações. O resultado é que um ingresso em torno de US$ 45 bilhões por ano, em 2010, declinou para perto de US$5 bilhões, atualmente.

Mas este quadro de fluxos financeiros baixos não é eterno, e como já ocorreu incontáveis vezes no passado os ingressos de capitais deverão retornar. Se o governo se mantiver fiel à decisão de usar o câmbio como instrumento para melhorar a competitividade da indústria, o que parece ser uma decisão prioritária, terá de retomar a acumulação de reservas, elevando a taxa de juros implícita sobre a dívida líquida.

Há muito que são lançadas advertências de que a acumulação de reservas tem um custo fiscal, que não aparece no orçamento do governo, e sim na taxa de juros implícita da dívida líquida. Da mesma forma, sabe-se que a descoberta da nova versão do "moto perpétuo" - a elevação da dívida pública para transferir recursos ao BNDES - tem um custo fiscal, que também aparece na taxa implícita de juros sobre a dívida líquida. Um excelente trabalho de Sergio W. Gobetti (Política Fiscal e Sustentabilidade do Crescimento) expõe como a taxa implícita de juros sobre a dívida líquida é determinada endogenamente, sofrendo a influência da acumulação de ativos, e traça cenários, alguns dos quais são extremamente preocupantes. Vale a pena ler esse trabalho.

Recentemente, o governo redescobriu que a política fiscal tem potência elevada para ampliar a demanda, o que, ao lado de sua decepção com a falha da política monetária em libertar o espírito animal dos empresários, vem elevando a tentação de reduzir ainda mais os superávits primários. Um risco nessa estratégia é o de aumentar as pressões inflacionárias. Mas este é o menor dos problemas para um governo que é extremamente tolerante a inflações acima da meta. O outro risco, dependendo dos exageros quanto à acumulação de ativos, à nova meta do superávit primário e às manobras contábeis que escondam o seu verdadeiro tamanho, é produzir o retorno do crescimento da relação dívida/PIB.

A aritmética malfeita dos que teimam em ignorar os argumentos acima diria que não há nenhum problema: afinal, a taxa Selic caiu, o que abriria espaço para superávits fiscais menores. Mas não vivemos no mundo do "faz de conta", e sim no mundo real, no qual o monstro da sustentabilidade da dívida não foi destruído. Está apenas adormecido!

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