terça-feira, outubro 09, 2012

Sem tesão, a vastidão - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 09/10


Anos atrás, tive o meu primeiro contato com a mortalidade. E a mortalidade, para um homem, começa sempre pelo telhado: durante semanas, o meu cabelo caía sem razão aparente.

Acordava e ele jazia no travesseiro. Tomava ducha e ele escapava pelo ralo. Usava o pente e o pente ficava parecido com a escova do gato. Consultei um médico.

Primeiro choque: o médico, um respeitável sábio em matéria dermatológica, era mais calvo do que uma bola de bilhar. O pensamento é fatal: se esse desgraçado não conseguiu salvar as suas posses, por que motivo irá salvar as minhas?

O choque deu lugar à compaixão --e à boa educação: não será ofensivo pedir ajuda a alguém que já cruzou definitivamente o capilar Rubicão?

Timidamente, explanei o problema que me trouxera ao consultório. O homem escutou-me, analisou as clareiras como um estratego militar e depois aconselhou ataque farmacológico imediato. Com um aviso: o tratamento acarretava uma certa frouxidão nas partes íntimas.

Eis o dilema que a medicina, em pleno século 21, tem para oferecer a um homem assombrado pela calvície: sexo ou cabelo?

Um cínico diria: sem cabelo, não há sexo. Mas confesso que preferi não arriscar: recusei o tratamento, comprei todos os filmes com o Yul Brynner (para me inspirar, para me consolar) e preparei-me para essa longa viagem sem retorno.

Foi então que o milagre aconteceu: o cabelo, da mesma forma que começara os seus comportamentos suicidas, terminou com eles. Às vezes, penso que foi tudo um teste do Altíssimo, uma espécie de provação de Jó (versão Vidal Sassoon), só para ver se a vaidade era mais importante do que o mandamento "crescei e multiplicai-vos!".

Pois bem: se lembro essa história, hoje, é por ter lido com o café da manhã as espantosas descobertas de cientistas sul-coreanos sobre os eunucos da dinastia Chosun (1392 - 1910). O leitor não leu?

Eu conto: após estudos dos arquivos genealógicos da corte imperial, os cientistas concluíram que os eunucos viviam, em média, mais 20 anos do que os homens do seu tempo. Alguns furavam mesmo a barreira dos 100 anos, fenômeno raríssimo para a época.

A lição que fica é inspiradora: se o leitor deseja viver tanto como os eunucos, a solução é transformar-se em um. Que o mesmo é dizer: pegar na tesoura, remover os testículos e abraçar a impotência como forma de vida. Sem os hormônios masculinos para atrapalhar, o céu é o limite. Ou, se me permitem o hai-kai: "Sem tesão, / a vastidão".

Eu próprio, em meu ordálio capilar, já tinha sido confrontado com a tentação. Renunciei a ela. Mas, aqui entre nós, quantos homens não preferiram já a castração química para terem uma juba leonina no topo da cabeça?

Aliás, a castração não é apenas química. É, sobretudo, comportamental. Sim, podemos rir dos pobres eunucos da dinastia Chosun e lamentar o destino deles, condenados a viver em haréns onde não podiam participar da festa.

Mas a nossa sociedade, no seu culto doentio e obsessivo da saúde e da eterna juventude, também promove as suas pequenas castrações cotidianas.

Do fumo à bebida; das gorduras aos açúcares; sem esquecer os calvários deprimentes nas academias do bairro, onde pateticamente declaramos guerra ao corpo e à boa e velha preguiça, as sociedades higienizadas do Ocidente são uma versão coletiva dos pobres eunucos orientais.

Também nós, do alto da nossa suposta superioridade civilizacional, estamos dispostos a renunciar aos prazeres mundanos por uma promessa fátua de longevidade.

A pergunta, inevitável, é tão válida hoje como era no século 14: valerá a pena uma vida mais longa quando se perdem pelo caminho as transgressões pecaminosas que dão a essa vida o seu tempero deliciosamente humano?

Ou, para citar a piada, haverá coisa mais deprimente do que morrer impecavelmente saudável?

Talvez haja: morrer com excesso de cabelo em cima e um deficit de atividade em baixo.

Não vale a pena. E se os eunucos ensinam alguma coisa é que, pela imagem clássica que nos chegou deles, nem em cima nem em baixo.

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