segunda-feira, outubro 29, 2012

Data Venia - ROBERTO POMPEU DE TOLEDO

REVISTA VEJA


Com o julgamento da Ação Penal 470, vulgarmente apelidada de "mensalão ( big monthly stípend", segundo a revista The Economist), chegando ao fim, a coluna sente-se liberada para divulgar o que ocorre nesse evento entre todos sagrado e secreto que é a hora do lanche dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Segue-se transcrição de gravação clandestina feita no local.

Presidente (entrando) — Sentemo-nos. Com o número regimental, declaro aberto este nosso sempre bem-vindo momento de descontração e fruição, momento que até sou tentado a classificar, com o poeta, de "luxo, calma e voluptuosidade". A mesa, como vossas excelências sem dúvida se dão conta, com a lucidez que os caracteriza, está posta. Para melhor compreensão do que temos à frente, um vade mecum gastronômico, se é que posso me expressar assim, ou cardápio, como se diz popularmente, encontra-se à frente de cada um.

Ministro A - Com a devida vênia, se vossa excelência me permite, eu o chamaria de charta, antes de vade mecum. Charta em latim significa papel, mas também uma folha escrita, e veio a gerar carta em italiano e carta em francês, termos usados, entre outros sentidos, também no deste "cardápio" tão singularmente brasileiro.

Ministro B - Se me é permitido um adendo, também entre nós "carta", do latim charta/ chartae, tem esse significado de ementa, lista, preçário.

Presidente - Agradeço por igual a pertinente colaboração de vossa excelência.

Ministro C (ao que se conclui, lendo o cardápio) — Eu apreciei sobremaneira a empadinha que nos foi oferecida ontem, mas vejo com tristeza que hoje não consta do cardápio.

Ministro D - Se vossa excelência me permite, o prato com as empadas está sobre a mesa.

C - Como posso aceitar isso? Quod non est in actis non est in mundus, qual seja, o que não está nos autos não está no mundo. Mutatis mutandis, permito-me concluir, por analogia, que quod non est in cardápio—ou in charta, como bem lembrou o eminente colega—non est in mundus.

D - Se vossa excelência se tivesse dignado a levantar os olhos da charta...

C - Não entendo a ironia. Vossa excelência quer me fazer crer que não devemos confiar no cardápio? Esta corte conta com servidores da mais alta qualificação. São impecáveis na criteriosa disposição da toga sobre nossos ombros como o são nos cuidados da cozinha e na preparação do cardápio respectivo. Em tantos anos de tribunal, jamais observei a existência na mesa de item que não constasse do cardápio. Ademais, se algo a vida me ensinou, é respeitar o que está escrito. Verbi volent, scripta manent.

Presidente — Vossa excelência expressa-se com a perspicácia costumeira e apresenta justificados argumentos, mas me permito esclarecer que as empadas realmente se encontram sobre a mesa, mesa esta que, não resisto a acrescentar, com o poeta das Gerais, é de madeira "mais de lei que qualquer lei da República".

C — Agradeço a observação de vossa excelência. Quero manifestar no entanto, senhor presidente, minha mais veemente repulsa à tese de que se deve observar o que há na mesa antes de consultar o cardápio, tornando-o assim

(ao cardápio) instrumento absolutamente despiciendo.

D — Isto é um desrespeito! (Ouve-se ruído que parece ser de chute desferido por baixo da mesa.)

C — Vossa excelência não admite discordância? (Ruído de chute igual.)

D — Vossa excelência faz vistas grossas! (Ruído do que é sem dúvida o prato de empadas lançado à cara do oponente.)

C — Vossa excelência não me convencerá com argumento dessa natureza. (Travessa, parece que de um bolo, pelo ruído fofo, arremessada em resposta.) Doravante, considerarei o cardápio cum grano salis. (Barulho de empadas, tortas e bolos zunindo no ar, pratos que se espatifam. Alguém tenta ser ouvido, ao fundo.)

Ministro K — Por falar nisso, dada a máxima vênia, vossa excelência me passaria o sal? (Ruídos do que parecem ser socos e pontapés. Interjeições de dor. A gravação se interrompe).


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