quarta-feira, outubro 10, 2012
Câncer, formicida e leite condensado - ROBERTO DaMATTA
O Globo - 10/10
À sentença shakespeariana que o mundo é palco e todos somos atores, pode-se acrescentar que os papéis recebidos e escolhidos, comprados ou obtidos por mérito ou eleições, devem ser honrados. No julgamento do mensalão eu pensava assistir a um "E o vento levou", mas estou testemunhando uma narrativa de Machado de Assis. O mesmo sentimento cerca as eleições cujo resultado vai ser formicida para uns e leite condensado para outros. Mas eu não tenho dúvida que estamos vivendo um momento de consolidação da igualdade. Há uma virada em curso.
Ele pensava nisso quando se descobriu com um câncer no pulmão. A doença, explicou o médico, atingira o pulmão direito e também o esquerdo simultânea e fulminantemente. A gravidade do caso veio na forma de uma daquelas palavras de raiz grega incompreensíveis e deu um estranho toque de normalidade para o anormal. Os pulmões iam tergiversar, pedir vista e, em 90 dias!, parar. Como é que o meu corpo, esse corpo fiel que eu tanto amei, vira-se contra mim? Em vinte minutos e 500 reais, passei de monstro saudável a doente com três meses de vida. E o pior é que, afora uma tossezinha boba, nada sentia. Mais ainda: o leite condensado com o qual sua saudosa mãe resolvia todos os problemas não funcionava. Leite condensado parava choro, mas não curava câncer. Calculou e viu que ele jamais saberia o desfecho do mensalão e da eleição.
Saiu do consultório focado na morte prevista. Esse oposto da vida. A vida termina, é claro, mas não se sabe quando. Era bizarro viver sabendo a data da morte. De agora em diante, a última vez seria companheira. Até o cafezinho ou um humilde aperto de mão poderia ser um grande gesto. Diante da vida em processo de liquidação, chorou com pena de si mesmo. Mas tramou uma vingança - um golpe para golpear a vida que o havia traído.
Fez um enorme empréstimo consignado que o governo facultava aos professores das escolas federais. Sendo professor e celibatário, tinha um belo cadastro. Um burocrático gerente fez-lhe um aporte de dois milhões de reais para serem pagos, como disse sorrindo, "a perder de vista..." Jamais serei julgado ou condenado, ria ele pela primeira vez depois do diagnóstico.
Vamos encontrá-lo agora numa viagem por três cidades do exterior, onde passeia como um vagabundo, morando nos melhores hotéis e comendo nos restaurantes mais caros. Oxford (onde havia sido um estudante pobre), Londres (onde raramente se distraía entre suas pesquisas sobre a antiestrutura das ordens estruturais) e Paris, onde entretinha longas conversas com um colega famoso cuja condescendência ele tomava por cordialidade. A visita a esses lugares como um homem rico datado pela morte trazia-lhe de volta um passado envolto em estudo e no tempo que gastara para mesquinhamente demolir o trabalho dos seus colegas mais estabelecidos. Movia-lhe mais a inveja do que o avanço científico, constatou bebericando com indiferença uma taça do melhor champanhe. E, nos jantares com os velhos professores e ex-colegas, percebeu como as mais sólidas teorias se desfaziam não apenas no ar, mas na perspectiva da morte prejulgada.
Numa visita ao Instituto onde havia obtido o diploma, encontra uma ex-colega. Saem para um almoço planejado para ser frugal mas que se transformou num tórrido banquete carnal e espiritual. Seguiram para um cruzeiro no qual faziam amor e discutiam os problemas mais sérios do seu próprio trabalho: as antiestruturas que, vistas de longe, se transformam em estruturas; e, em seguida, em processos. E os processos que, vistos de perto, gravitavam em torno de duras e, às vezes, turgescentes estruturas, retomando o ponto inicial.
No balanço do navio e da gangorra do amor, a doença era esquecida e o julgamento da morte dava lugar à vida que, imprevisível, retornava. Os sintomas mais graves jamais surgiram. Foram-se os três meses e ele estava mais forte do que nunca.
Recebi notícias dele nesses dias. Está excitado com o julgamento do mensalão, que acompanha religiosamente. Mas não sabe como vai dar conta da dívida. Estou dividido pelo amor e pela dívida, diz inseguro. Agora era a morte quem lhe dava uma rasteira. Sofria a angústia da normalidade dos que não sabem quando vão morrer e têm dívidas incomensuráveis com bancos, com pessoas, com rotinas e com o mundo.
Atormentado, comprou uma lata de leite condensado (que, como dizia sua mãe, resolvia tudo no Brasil) e um pote de formicida (que também faz o mesmo). Em casa, pôs lado a lado o doce e o veneno.
Nesse exato momento toca o telefone despertando-me da história. Era um jornalista solicitando uma entrevista. Coisa simples, professor: estamos fazendo uma matéria isenta sobre o mensalão e queremos saber a sua opinião antropológica sobre a propensão brasileira para o roubo público. Marquei a entrevista para o fim do dia. Afinal, nada mais ordinário do que responder a essas questões triviais que os jornalistas fazem o tempo todo.
Tentei retomar o meu personagem dividido entre o leite condensado e o formicida, mas havia perdido o contato mediúnico. E, sem ele, o herói simplesmente desvaneceu-se da minha mente. De modo que não tenho como terminar a crônica. Sugestões são mais do que bem-vindas, pois, se minha mediunidade literária foi subitamente suspensa, rogo a Deus e à realidade que ela não tenha acabado.
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