domingo, outubro 28, 2012

A comunhão no altar da Pátria - GAUDÊNCIO TORQUATO


O Estado de S.Paulo - 28/10


O homem, em estado de perfeição, ensinava Aristóteles, é o melhor dos animais. Quando, porém, afastado da lei e da justiça, é o mais selvagem e impiedoso de todos, pois, destituído de qualidades morais, usa a inteligência e o talento como armas para praticar o mal. É possível vislumbrar no pensamento do filósofo grego a inspiração que emoldura a sábia (e poética) observação do ministro Ayres Britto por ocasião da sessão da Suprema Corte que julgou o núcleo político da Ação Penal 470 pelo crime de formação de quadrilha: "Deus no céu e a política na terra. Por quê? Porque a política é o meio pelo qual a sociedade constrói e reconstrói o Estado. A política é o instrumento de concretização dos anseios do povo. É, acima de tudo, a forma pela qual se pode buscar o bem-estar coletivo, a manutenção da ordem e a concepção do progresso". Na mesma linha de salvaguarda dos primados da política no sentido aristotélico se encaixam a sentença do decano do Supremo, Celso de Mello, ao condenar a feroz ética maquiavélica - "os fins não justificam a adoção de quaisquer meios" - e o arremate do relator, Joaquim Barbosa: "A prática de formação de quadrilha por pessoas que usam terno e gravata traz um desassossego que é ainda maior dos que consagram a prática dos crimes de sangue".

No fundo, as perorações procuram elevar ao mais alto patamar da grandeza as virtudes do homem e a noção de direitos que Alexis de Tocqueville distinguia como imanentes ao mundo político. "Não existem grandes homens sem virtude; sem respeito aos direitos, não existem grandes povos e nem mesmo sociedade", pregava. Pelo que se viu, a histórica aula de Direito propiciada pelo STF há de merecer destaque não apenas pelo fato de ter trazido à tona questões centrais sobre a mola transformadora de uma sociedade, mas pelo feito de revestir conceitos clássicos - Estado, política, ética, direitos, cidadania, liberdade, democracia - com densa camada de argumentos cuja força reside, sobretudo, na aguda interpretação de nossa realidade política. No seio de uma cultura eivada de mazelas históricas, treinada na arte de transformar curvas em retas, impermeável ao temor do castigo por saberem seus artífices que, flagrados em práticas ilícitas, mais cedo ou mais tarde escaparão das teias que os envolvem, a decisão de punir altas figuras que ocuparam o centro do poder parece algo inusitado. Punir poderosos? Inacreditável, mesmo que se projete na mente social a imagem de uma Corte de juízes probos, independentes, autônomos, iluminados pela coleção de valores alinhavados pelo filósofo Francis Bacon: "Os juízes devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos que aclamados, mais circunspectos do que audaciosos".

Se alguém tinha dúvidas sobre o fator que efetivamente transforma a história das sociedades, recebeu concisa resposta na expressão da maioria dos ministros do Supremo: a igualdade dos homens. Todos são iguais perante a lei. Por isso urge evitar os exageros a fim de não se cair na desigualdade. A ciência política elege o igualitarismo entre os homens como essência da própria democracia. O ideal da liberdade une-se ao pilar da igualdade, condição que, por sua vez, exige práticas políticas irrigadas pelas águas da ética. Ao se anotar ali um grupo de pessoas notáveis, cada qual com seu devido aparato legal-jurídico, floresce a impressão de que o governo da justiça estende os braços a todos, sem distinção de classe ou categoria. Viceja o sentimento de que há uma plêiade que cuida (e bem) da vida da ordem.

A semente plantada pela Justiça demorará a frutificar? Pode ser. Mas o traçado da política pela régua dos nossos atores não será o mesmo. Mudará de direção. Representantes do povo, agora mais atentos ao que pode e ao que não pode ser feito, esforçar-se-ão para atenuar os vícios a que se amoldaram e cultivam. Não se muda uma cultura política da noite para o dia. Mas a longa trajetória da ética começa, bem o sabemos, com dois ou três passos morais. E a soma de passos conjugados, no centro e nos fundões do território, conduzirá os conjuntos políticos a exercitar comportamentos regrados por bons costumes e ações referendadas pelo império da lei. Como pano de fundo, a consciência de que a instituição judiciária funciona sem amarras. Autônoma, independente. Palmas para a democracia.

As vastas e nem sempre bem cuidadas roças da administração pública, nas três esferas, doravante deverão iluminar-se por refletores do Ministério Público, que, por sua vez, acionará os canais da Justiça, da primeira à última instância. A Lei da Ficha Limpa, que começa a vingar (marcando pênaltis contra infratores), e a Lei de Responsabilidade Fiscal, sobre a qual grupos de interesse se debruçam para tentar aliviá-la, funcionam como aríete contra a corrupção. Diminuir o custo Brasil da incúria torna-se vital para avanços na frente da gestão pública. Implica, ainda, a continuidade de programas bem avaliados pelas populações. Portanto, aos alcaides que tomam posse em 2013 se impõe o dever de realizar projetos inovadores e prioritários, dando sequência às boas ideias dos antecessores. O preço Brasil da descontinuidade, por vontade de substituir marcas antigas por novas, apresenta-se como um cancro da administração pública.

As consequências do julgamento da Ação Penal 470 já se fazem sentir na percepção do papel do Judiciário. Só não são perceptíveis aos olhos de grupos tampados por carapuça ideológica, cuja meta é a conquista do poder a qualquer custo. Mas é inegável o pulsar coletivo, visível em exclamações que resgatam o orgulho e a autoestima, a apontar a chama cívica iluminando o canto esquerdo do peito. Como faz bem à alma sentir o eco da expressão de José Ingenieros, em seu belo livro O Homem Medíocre: "Pátria é comunhão de esperanças, de sonhos comuns e a busca de um ideal; é a solidariedade sentimental de um povo, e não a confabulação de politiqueiros que medram à sua sombra".

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