segunda-feira, setembro 10, 2012
Soberania no século 21, uma Fifa ambiental? - MARIO CESAR FLORES
O Estado de S.Paulo - 10/09
A união por convergência de interesses nunca foi forte por longo tempo histórico. O Santo Império Romano (Sacro Império Romano-Germânico), união medieval europeia de base religiosa com reflexos políticos, teve seu ocaso evidenciado na Paz de Westfalia (1648), que consagrou a soberania dos Estados nacionais. Nos anos 1800 os sustos da Revolução Francesa e de Napoleão Bonaparte inspiraram a Santa Aliança, união de impérios conservadores que durou um século. O trauma das duas grandes guerras mundiais e o medo da URSS induziram no século 20 uma nova união europeia, já em crise por motivos econômicos, não mais neutralizados por imperativos da segurança, fragilizados pelo esquecimento geracional do trauma das guerras e pelo fim da ameaça soviética.
O evento Rio+20 evidenciou o que aparenta ser um grande problema global do século 21: o mundo de 7 bilhões de seres humanos (e crescendo) está unificado sob a perspectiva ambiental, mas continua fragmentado sob a política, sujeito a interesses distintos de seus cerca de 200 Estados. Cabe aqui a pergunta: os problemas transnacionais/globais exponenciados nos últimos decênios, na economia e, referência deste artigo, no meio ambiente, com seus reflexos no clima e na depredação de recursos naturais, serão capazes de criar alguma modalidade de união por convergência de interesses? Viveremos um simulacro do Santo Império, agora secular e global, capaz de controlar interesses nacionais em proveito do planeta e da humanidade, ao menos no tocante a alguns assuntos ambientais vistos como críticos?
A hipótese é difícil, mas não impossível. Da mesma forma que o interesse de populações nacionais crescendo aceleradamente nos últimos 200 anos, ameaçando a tranquilidade social e política, afetou restritivamente o conceito da propriedade, é provável que pressões ambientais expressivas para o mundo e a humanidade venham a influenciar restritiva, mas seletivamente, o conceito de soberania. Como e quanto, por ora em dúvida. A autodeterminação e a não intervenção em assuntos efetivamente internos provavelmente se manterão intocadas. Já a intocabilidade se aplicará irrestritivamente em assuntos significativos, de reconhecida transcendência transnacional?
É hoje consenso global que a lei nacional pode regular a propriedade visando ao interesse geral, em grau que depende de circunstâncias nacionais econômicas, sociais e culturais, mas alguma regulação sempre existe. Já os problemas ambientais não contidos nas fronteiras políticas incidem na equação supranacional, em que o conceito da soberania é usado na defesa de interesses de setores sociais e econômicos nacionais grandes e fortes, até compreensíveis, mas por vezes em conflito com os da natureza e da humanidade. Nas democracias, capazes de influenciar o humor eleitoral e, por isso, o "ânimo" político; nos autoritarismos, capazes de desestabilizar o regime. Esse problema tem de ser resolvido por acordos a que também se sujeitem os países de fato soberanos na acepção rigorosa do conceito: a força efetiva da soberania dos diminutos que, embora sujeitos ao quadro ambiental global, exercem diminuta influência nele, não é igual à dos Estados Unidos e da China...
Reside aí o nó da questão. Ressalvado o susto provocado por tragédias catastróficas com reflexos globais, que ninguém pode desejar como inspiração de solução, a sensatez realista sugere que a ajustagem do conceito de soberania usado pelos interesses nacionais, à conveniência do mundo e da humanidade, deve avançar gradativamente, sem saltos abrangentes, idealistas radicais que, mesmo quando em tese corretos, tendem à frustração porque incompatíveis com a realidade do poder. Grandes saltos ou grandes generalizações provocam resistência, pretender apressar utopicamente o difícil ameaça comprometer o possível, na construção do ideal.
A conduta perseverante, mas prudente e realista, facilitará a paulatina assimilação da ajustagem restritiva da cultura política consolidada há séculos (no caso, sobretudo o conceito da soberania irrestrita) às conveniências da natureza - e às da humanidade, que depende da natureza -, inclusive por países capazes de sustentar seus interesses a qualquer custo. Em realce hoje (mas não os únicos), os Estados Unidos, democracia em que a condução política está sujeita a interesses influentes no jogo eleitoral, e a China, de autoritarismo pressionado por necessidades prementes de sua população imensa. Assimilada gradativamente, a ajustagem acabará fazendo com que conveniências globais venham a ser aceitas como compatíveis (até coincidentes, ao menos no maior prazo) com os interesses nacionais - e vice-versa. A respeito da pressa irrealista, lembremo-nos do colapso do ambicioso projeto idealista da Liga das Nações, cujo ocaso teve início com o "não quero" do Congresso norte-americano: sem os Estados Unidos a Liga tendeu naturalmente à inocuidade! Em anos recentes: o peso de Kyoto teria sido maior com o apoio dos Estados Unidos.
Priorizar temas amplamente percebidos como já críticos facilita a aceitação de suas soluções específicas e os avanços priorizados estimularão a gradativa revisão da cultura multissecular. Em suma: a aceitação dos passos selecionados em razão da criticidade de seus temas acabará levando à da abrangência mais geral e o mundo tenderá a aceitar o avanço amplo, sem a necessidade de ser violentado por sustos traumáticos - esperançosamente em tempo que o poupe dos sustos. A compreensão engajada e influente das gerações mais novas, formadas já "na onda" da conveniência da evolução, certamente ajudará a impulsioná-la; a escola é ator importante no problema.
Em dimensão sem criticidade, o esporte é exemplo simbólico da viabilidade da evolução otimista: aceita a convergência dos interesses, o mundo inteiro respeita as regras da Fifa, nenhum país avoca soberania para afirmar que em seu território as regras são outras... Será viável uma Fifa ambiental?
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