sábado, setembro 15, 2012
Pecado original da tradução - SILVIANO SANTIAGO
O ESTADÃO - 15/09
Traduttore traditore – o adágio italiano é conhecido de todos. Menos divulgada é a metáfora "bela infiel", cunhada no século 17 por Monsieur Ménage. Usou-a para desancar a infidelidade na tradução em francês dos diálogos satíricos de Luciano de Samósata, de responsabilidade de Nicolas Perrot d’Ablancourt (1654). Assim se justifica: "Apelidei a tradução de a ‘bela infiel’. É a alcunha que eu, na juventude, atribuía a uma das minhas amantes".
Caminhe-se pelo corredor que leva do jogo de palavras em italiano à metáfora francesa. Durante o percurso, perceba-se que a tarefa de verter o texto de uma língua a outra se despersonaliza. O tradutor é desculpabilizado de traição. Esta é da natureza do texto traduzido, como o é das belas e elegantes mulheres. A desgraça passou a recair sobre algo de intrínseco à tradução exemplar - sua beleza e a elegância do estilo. Não são os tradutores que traem o autor e mistificam o leitor. É o recurso ao registro nobre.
Chama-se Eva o pecado original da tradução. Tidas como próprias do tradutor, beleza e elegância de estilo não são, na verdade, dele. Elas foram tomadas de empréstimo a quem de direito adquirido as abona, o autor. A sedução do leitor pelo belo e elegante estilo da tradução terá de ser punida pela crítica.
Com a ajuda do Dicionário da Academia Francesa (1694), atente-se para o fato de que a "fidelidade" ao texto original não correspondia naqueles tempos ao conceito atual de "literalidade". Associada à beleza e à elegância da mulher, a infidelidade ao original era então julgada como qualidade estilística usurpada pelo tradutor dos autores clássicos gregos e romanos, que nos ensinaram a exprimir em frases corretas, claras e puras.
Tanto mais elegante a tradução (isto é, tanto mais correto, claro e puro o texto traduzido), tanto maior o potencial da infidelidade ao original, infidelidade que estará sendo delicada e sutilmente transmitida ao leitor. Atribuída por Monsieur Ménage à tradução de Luciano, o pecado de Eva se perpetua no século 20 pela contradição expressa por George Bernard Shaw: "Mulheres são como traduções. As bonitas não são fiéis. E as fiéis não são bonitas".
A metáfora amorosa francesa é o fundamento do título – As ‘Belas Infiéis’ (Lisboa, Pedago, 2012) – de excelente antologia de textos sobre a tradução francesa no século 17, com introdução, tradução e notas de João Domingues. A ela recorri. Dela continuo a falar.
A antologia apresenta qualidades salientes. Por um lado, preenche uma lacuna. O minguado conhecimento das traduções e dos tradutores gauleses no século de Racine não possibilitava que o historiador da literatura francesa os promovesse frente à exuberante e notável produção do humanismo renascentista. Lacuna aberrante, porque se desconhecia o bom número de profissionais que na França clássica se apresentavam – nos prefácios, nas introduções e nas advertências ao leitor – como teorizadores da tradução.
Ao complementar o saber atual sobre o trabalho de verter livro de uma língua a outra, a antologia, por outro lado, repudia definitivamente o adágio italiano e põe em xeque a verdade da metáfora francesa. À semelhança de Manuel Bandeira ou dos irmãos Campos, os franceses do século 17 são "exímios críticos literários". Na época de Boileau, "a própria arte de traduzir revela, de forma intrínseca e inextricável, uma profunda atividade de análise e de crítica literária".
Ao desconstruir a metáfora "bela infiel", João Domingues realça o valor da crítica literária prévia à tradução que, paradoxalmente, se patenteia nas "infidelidades conscientes" ao original. Elas visam não a "deformá-lo, mas antes a eliminar defeitos, melhorar expressões, tornar mais claro o sentido, ou eliminar elementos com os quais se não concorda". O já citado d‘Ablancourt escreveu que só depois de o texto original ter sido bem assimilado é que se pode traduzi-lo; de tal modo assimilado, que o nome do autor a ser traduzido nada mais seria que parte do título de uma obra que já então seria de sua autoria.
Para eles, traduzir não é só obra de erudição. É também "ato de patriotismo", já que "desde a época do Humanismo, afirmar e confirmar as qualidades da língua francesa foi sem dúvida um dos motores da classe dos tradutores". À efígie da moeda nacionalista contrapõe-se o reverso cosmopolita. Doublé de romancista e de historiador literário, Charles Sorel ousa incluir livros traduzidos na sua famosa Bibliothèque Française (1664). Explica-se: "Elegi obras que quanto à origem são espanholas. Elas podem encontrar espaço neste livro porque se transformaram em francesas pela tradução".
Outro tradutor da época, Régnier-Desmarais, afirma que os diversos graus de exatidão exigidos na tarefa são determinados pelo tipo de livro a traduzir. A maior exatidão é requerida na tradução dos textos sagrados, "uma vez que, sendo Palavra de Deus, contêm o mais alto grau de verdade que a linguagem humana pode albergar". As constrições (contraintes) políticas e religiosas agiam de modo considerável sobre a prática da tradução no século 17 francês. Eram maquinadas tanto na Academia Francesa quanto entre os jansenistas de Port-Royal-des-Champs. Contraditoriamente, as constrições seriam sacudidas pela tradução de obras espanholas e inglesas, que aportavam novas ideias em Paris. Às obras sagradas seguem-se as relativas às ciências e à teologia. Domingues fecha a escala descendente: "Menos exatas podem ser as traduções de obras de eloquência e de poesia, bem como tudo o que pertence, em geral, à literatura de ficção".
No século 18 francês, o remorso toma de assalto a "bela infiel". Jean-François Resnel decide submeter ao inglês Alexander Pope, autor, sua tradução de An Essay on Criticism (Essai Sur la Critique, 1730). Tradutor, traidor.
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