domingo, setembro 16, 2012

O mundo encharcado de ira - LEE SIEGEL


O Estado de S.Paulo - 16/09



Às vezes, um padrão desponta em eventos aparentemente desconexos nas notícias do dia a dia. Às vezes, uma qualidade humana imbuída da força da natureza se revela o motor que move o mundo, como as emoções dos deuses gregos regiam os mortais abaixo.


A ira. É o equivalente humano ao aquecimento global. Dia após dia, ela corrói a atmosfera moral. Aristóteles considerava a ira uma emoção fraca, junto com o prazer, mas também acreditava que havia um lugar para ela. Havia ocasiões que pediam uma pequena quantidade de raiva, e havia ocasiões que pediam uma grande quantidade de raiva. Na melhor hipótese, acreditava Aristóteles, a ira podia ser uma espécie de raciocínio precipitado. Mas ele não tinha dúvida de como era gratificante ficar irado. E citou a Ilíada: "Ela é mais doce que o mel que escorre com doçura, e se espalha pelos corações dos homens." Aliás, "ira" é a primeira palavra da Ilíada - Homero atribui a Guerra de Troia à ira de Aquiles porque sua concubina escrava lhe fora roubada por Agamenon, seu rei. Mas, embora Homero não o diga, Aquiles na Ilíada é um exemplo do homem cuja raiva não só excede, como devora a razão. Sua raiva não é raiva, de fato. É ira, furor, cegando com sua intensidade, ofuscando com sua breve onipotência, intoxicando com sua promessa fugaz de controle do mundo. A ira de Aquiles é a ancestral de nossa raiva contemporânea.

Se tivesse tempo, eu escreveria uma genealogia da ira percorrendo seus caminhos até os acontecimentos contemporâneos. A ira contra a América levou aos ataques do 11 de Setembro. A ira contra os ataques do 11 de Setembro levou às invasões americanas de Afeganistão e Iraque - ou, ao menos, à aceitação pelo público americano dessas decisões militares desastrosas. A ira contra as invasões americanas do Afeganistão e Iraque levou a incontáveis atos violentos, de ataques terroristas contra americanos a ataques de aviões não tripulados americanos (drones) no Paquistão, que tiram vidas de civis inocentes como "danos colaterais", ao recente ataque ao consulado americano em Benghazi, Líbia, e o assassinato de quatro americanos ali, incluindo o embaixador americano na Líbia.

Esses são macroeventos, mas eles têm origem no microcatalisador conhecido como coração humano. Considerem o tiroteio no Empire State Building de algumas semanas atrás. Ele teve um poder arquetípico. Um homem chamado Jeffrey T. Johnson, um artista plástico que virou designer de moda, matou a tiros seu superior, Steven Ercolino - um vendedor -, na frente do seu escritório que abrigava uma empresa que vendia bolsas de mão e cintos. Uma desavença vinha se estendendo entre eles havia anos. Um enfurecido Johnson sentiu que Ercolino o estava insultando continuamente por fazê-lo acelerar seu trabalho. (Aristóteles: "A ira pode ser definida como um desejo acompanhado de dor que nos incita a exercer vingança explícita por causa de um desdém manifestado contra nós..." Um irado Ercolino sentiu que Johnson, como empregado de Ercolino, não mostrou suficiente respeito a seu superior. (Aristóteles: "Uma espécie de insolência é tirar das pessoas a honra que lhes é devida... Por isso, Aquiles diz enfurecido, 'Como um estrangeiro por ninguém honrado'." O mundo é antigo, e nada muda. A tecnologia em evolução amplifica algumas emoções humanas e abafa outras, isso é tudo.

Enquanto escrevo, professores do ensino fundamental de Chicago, em greve, manifestam-se enfurecidos contra autoridades que querem tornar seu mandato dependente das notas de testes de alunos. As autoridades por sua vez estão respondendo aos pais irados que vivem em meio a taxas crescentes de criminalidade e uma desesperança geral, e que estão pedindo que as escolas façam mais para ajudar seus filhos a permanecerem e progredirem na escola. Mas a melhor das educações disponível não serviu para impedir o enfurecido pistoleiro "Dark Knight", um fracassado aluno de pós-graduação, de abrir fogo naquele cinema do Colorado.

Um Obama aparentemente incapaz de mostrar raiva, ou, talvez, até de ficar irado, encenou recentemente sua versão de ira aristotélica bem proporcionada ao ouvir a notícia da embaixada americana destruída e os americanos assassinados. Um Romney aparentemente incapaz de mostrar ou, talvez, até de possuir algum tipo de emoção, encenou recentemente sua versão de raiva razoável, moderada, com o governo Obama, por este se desculpar por um filme americano zombando do profeta Maomé - um filme raivoso que alegadamente provocou manifestações enfurecidas em Benghazi. Democratas enfurecidos, e alguns republicanos, denunciaram iradamente Romney pelo que acreditaram ter sido um ataque frio e politicamente calculado a Obama.

Estou olhando as manchetes neste momento. A escolha da atriz negra Zoe Saldana para fazer a cantora negra Nina Simone num próximo filme sobre a vida de Simone enfureceu algumas pessoas porque, diferentemente da pele escura de Simone, Saldana tem a pele mais clara, e o sentimento é que Hollywood estaria fazendo média com plateias brancas. Agricultores americanos estão furiosos com o Congresso porque os legisladores se recusaram a ajudá-los a se recuperar da seca que destruiu suas colheitas. Judeus ultraortodoxos estão furiosos porque o Conselho de Saúde de Nova York está tentando regulamentar um certo tipo de circuncisão entre ortodoxos para protegê-los da herpes. Uma professora da American University em Washington D.C. enfureceu seus alunos quando decidiu amamentar seu bebê recém-nascido em sala de aula...

Se existem seres conscientes em algum lugar do universo, eles devem ter, como nós, máquinas altamente sofisticadas capazes de captar sinais ultrassônicos de lugares distantes. Nosso mundo encharcado de ira deve soar para eles como uma vociferação perpétua. Aqui, na Terra, tudo que podemos fazer é esperar uma ironia messiânica: que as pessoas fiquem furiosas demais para tolerar a ira geral.

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