domingo, setembro 16, 2012
Nas profundas dos '70 - HUMBERTO WERNECK
O Estado de S.Paulo - 16/09
Os amigos ficaram em choque, em xeque, quase em chilique quando começaram a correr murmurações de que ele dera para frequentar reuniões do Somos, recém-criado "grupo de afirmação homossexual". Pior que isso: fora visto (por quem? Melhor não perguntar...) na suarenta animação da Homo Sapiens, boate gay que crepitava no centro de São Paulo naquela incauta antevéspera da aids.
Logo ele, acima de qualquer suspeita - e os companheiros de pelada e churrasco se encheram de dedos para interpelá-lo, aflitos porém esperançosos de que não passassem de boatos suas imersões lascivas na Homo Sapiens e a adesão ao tal grupo de afirmação homossexual.
- Somos - confirmou ele - e piscou, malicioso: - Mas quem não são?
* * *
Pela mesma época, final dos anos 70, quatro ou cinco jovens casais paulistanos viravam noites papeando, enquanto davam cabo do nacional Granja União, que todos eles (inclusive o que hoje é enólogo dos mais bochechadores) consideravam não só potável como altamente palatável.
A conversa volta e meia era sobre os filhos que em breve iriam ter, e sobre cuja educação, eriçada dos piagets e summerhills da moda, cada qual tinha inquebrantáveis convicções.
Com a autoridade de quem era ali o único par que já proliferara, um dos casais pontificava, ah, não é como vocês estão pensando - e tome teorias hauridas em noites em claro, febres ebulientes e cocôs apoteóticos. A jovem mãe, essa exorbitava na modernidade. Quando fulaninha - então com seis meses de idade - tivesse um namoradinho, e o levasse à casa, ela não só permitiria que dormissem juntos como providenciaria as toalhas e lençóis.
Disse aquilo e correu os olhos em roda, ávida por recolher os aplausos que sua mentalidade aberta, escancarada, na certa merecia. Segundos de silêncio antes que se fizesse ouvir a voz acolchoada de uma das jovens senhoras, possuidora de até então insuspeitado espírito de porco:
- E se em vez de namoradinho ela te aparecer com uma namoradinha?
- Eu mato! - rugiu a mãe avançada, regredindo bruscamente a sua caverna de classe média bem-pensante -, eu mato!, num descontrole até físico que a fez derrubar um copo, pondo a perder preciosos centilitros de Granja União e inutilizando o carpete, aquela praga que revestiu os anos 70.
* * *
A moçada de hoje há de rir do sufoco por que eventualmente passavam, naquela triste década, os consumidores de Cannabis sativa. Na casa de uma numerosa família belo-horizontina, a lavadeira, na hora de botar a roupa na máquina, achou uma trouxinha no bolso da calça de um dos rapazes - e, ávida por mostrar serviço também no quesito repressão, levou o achado ao chefe da família. O qual, no mesmo dia, encerrado o jantar, convocou o filho: precisamos ter uma conversa! Fechados na sala, o patriarca, sem dizer palavra, estendeu o braço e, teatralmente, exibiu na mão espalmada o móvel do crime.
- Meu guaraná! - exclamou na bucha o rapaz, apoderando-se da trouxinha, enquanto o rosto do pai se desanuviava. Diria depois ao filho mais velho:
- E eu que cheguei a fazer mau juízo do seu irmão, pensando que ele fumava maconha...
* * *
Em outra casa de boa família, pai e mãe não sabiam sequer sob que forma os jovens transviados consumiam maconha - erva diabólica que acreditam ser de uso exclusivo de "pretos vadios em terrenos baldios", no dizer desinformado e rimado do doutor. Já a matriarca fantasiava hordas de marginais a sorver, sob a forma de chá, "copos e copos de maconha". Os filhos, claro, não se pronunciavam. Como no tango de Gardel, fumando esperavam. Olhinhos vermelhos e expressão bovina, limitavam-se a ver o pai passar com o regador rumo ao jardim:
- Lá vai o velho aguar as coisas...
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