domingo, setembro 02, 2012

Lula, os dragões e o poder dos fracos - ROBERTO DaMATTA

REVISTA ÉPOCA 


Um imperador chinês adorava dragões. Colecionava suas imagens e os reverenciava. Os dragões, que ocupavam o lugar mais alto na hierarquia dos animais na China e eram associados ao próprio imperador - a palavra dragão em chinês produz o som do trovão ficaram felizes quando, nas mon­tanhas onde viviam exilados, souberam que ele os admirava. Rompendo o confinamento, eles resolveram visitá-lo. Desa­jeitados, rastejaram, galoparam e voaram para o palácio im­perial. Foram recebidos com insultos. O imperador até tentou encarar a visita como uma cortesia. Mas, quando se viu diante daqueles bichos escamosos e fedorentos, que, enquanto fala­vam, provocavam labaredas que queimavam plantações, dei­xou de lado a admiração que sentia e os expulsou do palácio.

Ouvi essa história de um cientista político chinês, durante uma palestra numa universidade americana. Como se sabe, disse com ironia o colega chinês, todo mundo ama e admira a democracia desde que ela, como os dragões, permaneça nas montanhas. Quando a demo­cracia chega cuspindo o fogo da liberdade - com seu poder de reduzir ricos e pobres, fracos e fortes à igualdade perante seus poderes -, há em toda parte uma forte reação. Hoje, os dra­gões são bons símbolos das confusões perma­nentes da competição eleitoral e da igualdade de todos perante as leis, porque a vida numa democracia liberal é tão complexa e difícil quanto a desses seres que, de repente, podem botar fogo pela boca.

Como domesticar os dragões no caso de países como o Brasil? Aqui, eles correspondem não ao ideal de democracia, mas a outra idealização: a enorme diferença entre o que se diz e o que se faz com nossos companheiros e com nosso partido quando chegamos ao poder. Aí está o mensalão, armado por aficionados desses monstros, que não me deixa mentir. O dragão pergunta: será que o voto deve ter o mesmo valor para todos? Se sabemos a solução para os problemas do Brasil, não seria legítimo comprar votos e políticos, e até mesmo partidos inteiros - para permanecer no poder resolvendo, a nosso modo, os problemas do povo brasileiro? Não se trata de tomar partido, trata-se de condescender com a desonestidade como um meio para permanecer no poder.

Lula, sem sombra de dúvida, foi o político simbolica­mente mais forte da história do Brasil. Ele não precisava adorar dragões, porque dentro dele conviviam o dragão da miséria, da fome, do abandono e da pobreza, com todos os seus terríveis coadjuvantes. Jamais se viu um presidente ou líder político com tanto poder de aglutinação simbóli­ca como Lula. Ele atraía os ricos pela culpa e pelas novas oportunidades de ganhar dinheiro com - e não contra - os trabalhadores sindicalizados; era amado pelos subordinados e ressentidos; era incensado pelos intelectuais - sobretudo os chegados a um despotismozinho inocente -, porque, como Platão, supunham que ele poderia ser educado ou convertido; era idolatrado pelos fanáticos pelo poder porque, com Lula, algo novo ocorreria com seus donos. E, finalmente, Lula dragava na sua figura os cristãos porque, nascido no centro da opressão, ele sofreu, mas não desistiu.

Sua fala repleta de erros crassos de por­tuguês e de imagens simplórias não era, como pensavam os letrados, um demérito. Era o mais sincero testemunho de sua ori­gem popular, porque essa fala confirmava o “pobre” iletrado (e explorado) no papel do presidente que pode tudo. Lula foi pre­miado com a Presidência por suas virtudes e por algo que a teoria política burguesa dos Hobbes, Rousseaus, Lockes e Mills jamais perceberam: aqui­lo que alguns antropólogos chamaram de “poder dos fracos”. O poder dos miseráveis nas sociedades intransigentemente desiguais, como a nossa, que tem a ilegítima legitimidade de transformar o assalto à mão armada em distribuição de renda. Esse poder dos fracos é o velho poder das ciganas que vivem miseravelmente no presente, mas predizem o futuro. Lula foi a imagem da redenção do Brasil pelo Brasil.

Nem a Revolução Francesa, nem a Russa, nem a Ame­ricana tiveram um ator com tais atributos. Pois Lula é a metáfora viva do que uma democracia pode fazer e do que só pode ser feito numa democracia construída por meio de uma imprensa livre e da competição eleitoral. Nas revolu­ções que romperam as realezas e inauguraram a democracia como uma forma de vida, esse dragão feio, imperfeito, inclassificável - porque é ave, réptil e é também um mamífero

não há nenhum líder como Lula. A Revolução Gloriosa e a Francesa foram feitas por pensadores burgueses. Nem mesmo Mandela, negro e advogado, se iguala a ele. Ne­nhum deles veio tão de baixo - nem mesmo na Revolução Americana, onde se fundou a primeira sociedade civica­mente igualitária do planeta, como tão bem percebeu um deslumbrado Alexis de Tocqueville.

Medir o que Lula representa simbolicamente é mais fácil hoje porque o tempo e a vida - e, mais que isso, a presença do petismo nas engrenagens paradoxais do poder - re­velaram, logo no primeiro governo, a impossibilidade de seguir à risca o projeto ideológico de permanência, hoje em julgamento pelo Superior Tribunal Federal. Lula perdeu parte de sua atração ideológica quando se filiou ao projeto brasileiro perene de manter nossas desigualdades confian­do ao Estado (não à sociedade) seu projeto de revolução. E tome roubo e recursos públicos, e tome funcionalismo acima das leis.

Está Lula hoje, como um ex-presidente profissional que sabe como ninguém jogar com a dramaticidade de sua trajetória e com os anseios messiânicos do povo brasileiro, ainda desejoso de ter um dragão que tudo resolva? É certo que Lula tem um papel ímpar no processo político nacional. Mas também é seguro que ele não goza mais aquela ausência de verniz que o cobria como um presidente messias - um po­bre governando os pobres. A aura de pureza e de inocência dos fracos e destituídos desmanchou-se diante da fieira de roubalheiras que é parte de sua era.

As eleições são o teste. Veremos se Lula continua com o mesmo poder de transferir carisma ou se o desfrute do poder concreto tem mesmo a capacidade destrutiva de transformar dragões em lagartos. Quem viver verá. E quem viver também verá se ainda precisamos de messias populistas que são pais (e mães) do povo - ou se começamos a exigir um estilo de governo mais impessoal, menos mendaz, mais democrático, que gerencia em nome do povo o que só a ele pertence.

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