segunda-feira, setembro 10, 2012

Espelhamento narcisista - DENIS LERRER ROSENFIELD


O Estado de S.Paulo - 10/09


A sucessão de greves do setor público nestes últimos meses e, com maior ênfase, nas últimas semanas mostra um divórcio crescente entre o funcionalismo público e os cidadãos deste país. É como se a burocracia estatal estivesse dando as costas para a sociedade, que a sustenta.

Convém assinalar que o serviço público não é um fim em si mesmo, mas uma instância estatal voltada para atender às demandas da sociedade. Se houver um descolamento entre ambos, as distorções serão inevitáveis, com os cidadãos desenvolvendo a percepção de que a burocracia estatal não cumpre suas funções, aparecendo essa como uma casta que procura somente o atendimento dos seus próprios interesses.

O Estado - logo, a burocracia estatal - é financiado pelos contribuintes por meio de impostos, contribuições e taxas. Na verdade, ele dá um destino diferente aos bens alheios, em nome do bem coletivo capaz de produzir. Se há transferência de bens privados para a esfera estatal, é com a finalidade de que ela seja capaz de retribuir com os serviços correspondentes.

A sociedade tem o legítimo anseio de que as funções públicas sejam efetivamente exercidas, justificando, dessa maneira, os recursos que lá são aplicados. O Estado, em todo caso, não poderia fazer uso indiscriminado e arbitrário dos recursos que recebe para gerir em nome do bem coletivo. A burocracia estatal existe - ou deveria existir - para atender os cidadãos. Se estes transferem uma parte dos seus bens para o Estado, é para que tenham o retorno adequado sob a forma de serviços. Não transferem esses recursos para que os funcionários públicos sejam um fim em si mesmos, independentemente dos serviços prestados.

Nesse sentido, chama particularmente a atenção o fato de a greve de setores do funcionalismo público ter como maiores prejudicados os cidadãos, esses mesmos que sustentam a burocracia estatal e seus salários. Em vez de terem seus serviços assegurados, confrontam-se com as piores incomodidades em seu cotidiano e em seu trabalho, com repercussões que afetam a livre circulação, a saúde e a vida profissional em geral. A insegurança é uma das suas faces.

Mais especificamente, as greves do serviço público têm frequentemente como objetivo prejudicar os cidadãos, como se assim suas demandas pudessem ser atendidas. E perdem o apoio da população em seu enfrentamento com os governantes. Esse prejuízo não se dá só pela omissão dos serviços prestados, mas também sob a forma claramente desrespeitosa de "operações-padrão", por exemplo.

Ora, "operações-padrão" nada mais são do que formas acintosas utilizadas pelos grevistas para produzirem um prejuízo ainda maior para os cidadãos, pois a lentidão e o descaso daí resultantes são exasperantes. Filas enormes se formam, como se os grevistas estivessem agindo de acordo com a lei, enquanto o fazem ao arrepio dela. Eles afrontam ao mesmo tempo o Estado de Direito e os cidadãos.

Logo, não deveria ser um segredo para ninguém que essas greves se tornam cada vez mais impopulares, não angariando nenhuma simpatia. Pudera! Se foram feitas para perturbar a vida dos cidadãos, o seu resultado só pode ser o descontentamento generalizado.

Ademais, a média dos salários de alguns desses setores grevistas é muito maior do que a que vigora no setor privado, além de terem garantias como a da aposentadoria integral. Ou seja, quem sustenta a burocracia estatal ganha bem menos do que quem usufrui esses recursos transferidos sob a forma de impostos, contribuições e taxas. Os que contribuem pagam pelo que não recebem e, além disso, são afrontados em sua vida cotidiana. Por sua vez, os que deveriam prestar os serviços públicos correspondentes ganham muito melhor do que os que transferem uma parte dos seus bens para o Estado.

O funcionalismo público está cortando, dessa maneira, os seus laços com a sociedade. Os servidores estão vivendo no que se poderia denominar espelhamento narcisista, que se explica por demandas eufemísticas de "mudanças de planos de carreira". O que são, na verdade, essas demandas?

Elas são o produto de uma espécie de espelhamento entre as diversas carreiras do funcionalismo público, uma procurando equiparar-se ou mesmo ultrapassar a outra. Cada setor olha para o outro, nenhum deles dirigindo o seu olhar para a sociedade. Funcionários de uma carreira x procuram se igualar aos de uma carreira y, a partir de uma visão enviesada dos serviços prestados, como sendo, ainda segundo eles, do mesmo tipo.

Toda equiparação se torna, assim, um aumento salarial travestido, como se disso não se tratasse. Criam-se as condições de uma bola de neve que termina invadindo toda a burocracia estatal. O seu desfecho consiste num incremento substancial dos gastos públicos com a folha salarial, num processo que desconhece limites. Desenvolve-se todo um corporativismo sindical, que ganhou grande incremento no governo Lula, particularmente atento ao atendimento dessa sua base eleitoral.

A sociedade observou, estarrecida, demandas crescentes, criando um hiato importante em relação aos salários vigentes no setor privado. Surge, então, um sentimento difuso de injustiça na opinião pública, produto do descolamento produzido entre a casta burocrática e o comum dos cidadãos.

O espelhamento narcisista das carreiras do serviço público traduz-se por outro espelhamento ainda: o dos cidadãos que não se reconhecem no destino dado aos seus recursos. Nesse sentido, a não leniência do governo Dilma Rousseff no tratamento dado aos grevistas, com ameaças tornando-se efetivas de corte de ponto, só poderia ter o apoio dos cidadãos que se sentem prejudicados. Os grevistas, por sua vez, foram entregues à sua responsabilidade pelos danos causados à sociedade, cuja consequência bem poderia ser o não pagamento dos dias parados. Seriam simplesmente remetidos à sua escolha.

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