quarta-feira, setembro 26, 2012

É o fim do mundo - MARCELO COELHO

FOLHA DE SP - 26/09


Afraninho é um garoto fora de série. Aos nove anos, já leu as principais obras de José de Alencar (1829-77), de Raul Pompeia (1863-95) e de Nélida Piñon. As tias do interior dizem que ele é um crânio.

Como toda criança de sua idade, Afraninho também passa muitas horas no computador. Só que, em vez de perder tempo com bobagens, ele costuma acessar sites de alto conteúdo cultural.

Ultimamente ele tem se dedicado muito a acompanhar, pelo site do Supremo Tribunal Federal, o julgamento do mensalão. Mas quando os ministros dão uma folga, Afraninho volta ao seu sítio preferido. (Ele prefere dizer “sítio” em vez de “site”.)

É a página da Academia Brasileira de Letras (www.academia.org.br). Lá, Afraninho pode acompanhar o que de melhor se faz na literatura brasileira, ademais de manter-se ao corrente das atividades de seus acadêmicos preferidos.

Soube, por exemplo, que “atendendo a convite da Fiat feito à Academia Brasileira de Letras, o Acadêmico Carlos Nejar esteve presente, dias 13 e 14 do corrente, à Exposição de Caravaggio, no Museu de Arte de São Paulo”.

Nervosos, céleres, os pequenos dedos de Afraninho movimentam o mouse (ratinho? Camundongo? Camondongo, como preferem alguns?).

Outra notícia. O Acadêmico Evanildo Bechara comemora, com palestra, os quatro anos do Acordo Ortográfico. Já a presidente da ABL, Ana Maria Machado, informa que proferiu aula magna, em francês, na Universidade Blaise Pascal de Clermont-Ferrand.

Os alunos da Faculdade de Editoração e Ciências do Livro ouviram, assim, uma palestra na qual a autora “evocou sua trajetória em contato constante com os livros”.

Afraninho ia redigir um bilhete de congratulações quando algo chamou sua atenção no site da ABL.

Começava a ser transmitida, ao vivo, conferência do professor Jorge Coli, dentro do ciclo Mutações, organizado por Adauto Novaes.

Afraninho já tinha acompanhado outras transmissões do gênero, versando sobre Valéry ou sobre a morte das utopias.

O tema escolhido por Jorge Coli não deixava de ser alvissareiro: “O Sexo Não é Mais o Que Era”. Bom motivo para Afraninho acompanhar as considerações do renomado crítico. “Se o sexo ainda fosse o que eu penso que é, seria sem dúvida pouco recomendável que, na minha idade, eu seguisse a conferência.”

O título, todavia, iludiu o ajuizado garoto. Os comentários de Jorge Coli vinham acompanhados de imagens de elevado teor erótico.

Afraninho ficou de cabelo em pé, coisa que não lhe acontecia desde a última palestra de Marilena Chaui.

Uma das primeiras imagens era o célebre quadro de Courbet (1819-1877), que retrata, em close e de modo praticamente frontal, uma especificidade da anatomia feminina que nosso protagonista, bastante arguto para a idade, não tardou em reconhecer.

Seu cérebro, entretanto, estava despreparado e imaturo para a devida apreciação do que Jorge Coli exibia sem pudor.

A obra, cá entre nós, não é tudo o que dizem. Sua fama, para além da ousadia temática, reside no título que lhe foi dado por Courbet, o qual não passa de um trocadilho: “A Origem do Mundo”.

Confuso, Afraninho indagava-se se aquela pintura não seria outro quadro célebre, o “Isto Não é Um Cachimbo”, de Magritte. Suas dúvidas não puderam ser dissipadas.

Depois de outra imagem pesada, agora de Jeff Koons, e depois de Jorge Coli pronunciar uma palavra mágica, verdadeiro abracadabra para todo intuito de censura (a palavra “boceta”), algum funcionário da Academia Brasileira de Letras resolveu interromper a transmissão. A presidente da ABL, de volta de Clermont-Ferrand, subscreve a atitude saneadora.

Afraninho agora navega em outros sites da internet. Faz sucesso entre as crianças, por exemplo, o “Mundo Canibal”. Aparece ali um desenho animado humorístico. Um velho desdentado se decepciona ao saber que a loira a quem pagou por uma felação era transexual. Amputa-lhe o pênis; o sangue espirra na tela do computador.

Surpreendi meu filho de oito anos às gargalhadas com isso. Naturalmente, proibi o acesso ao site. Quanto ao site da ABL, tampouco o recomendaria a crianças de sua idade, por outros motivos.

De certo modo, a censura é bem-vinda. Para cada fictício Afraninho que se desencaminhou com a “A Origem do Mundo”, haverá dez ou vinte marmanjos sabendo agora que, no site da ABL, coisas interessantes também podem acontecer. Ou podiam.

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