quarta-feira, agosto 22, 2012

Justiça e narrativas pós-modernas - ELIANA CARDOSO

O Estado de S.Paulo - 22/08


No julgamento do mensalão, acusadores e defensores reconheceram os empréstimos bancários tomados pelo PT por intermediação de agência de publicidade e os repasses em espécie a petistas e associados. A acusação contou uma história bem articulada de desvio de dinheiro público, corrupção de parlamentares, fraude de contratos e compra de apoio parlamentar a um governo prejudicado pela falta de maioria no Congresso.

A defesa, fraca, disse que José Dirceu se desligara do PT e nada sabia. Mas quem se lembra da época do ocorrido também se lembra de José Dirceu como loquaz porta-bandeira das diretrizes do governo e dos interesses do PT. A defesa alegou ainda que José Genoino - um político que se gabara da capacidade do governo de formar uma base aliada mediante vantagens concedidas pelo Estado - não se envolvera em assuntos financeiros.

Onde está a evidência que poderia contrariar a tese da acusação? Em lugar nenhum. Os advogados abrigaram-se atrás de qualificativos e alegaram que o mensalão não passou de "ilusionismo jurídico" e "construção mental", seguindo a afirmação pós-moderna de que verdades e fatos não existem. Isso mesmo. O relativismo ensina que os fatos dependem de quem os interpreta: os homens atribuem à história bem contada - que seduz o ouvinte ou leitor com sua retórica de persuasão - a categoria de verdade. Troque o narrador e a verdade será outra.

Mas parece improvável que a defesa consiga convencer a opinião pública da procedência dessa tese relativista sobre a justiça, tese que encontra voz no livro de Janet Malcolm Anatomia de um Julgamento: Ifigênia em Forest Hills. A autora sugere que julgamentos não passam de competição entre duas narrativas rivais. A vitória não pertenceria aos fatos, mas à narrativa que soa mais convincente a nossos ouvidos viciados pelos romances do século 19.

Janet Malcolm conta a história da condenação de Mazoltuv Borukhova e Mikhail Mallayev pelo assassinato de Daniel Malakov. Um divórcio amargo condenara Daniel a visitas supervisionadas, porque sua mulher alegara abuso sexual da filha, Michelle. Quando Daniel recuperou a guarda da criança, foi assassinado, em plena luz do dia, por Mikhail a mando de Mazoltuv Borukhova.

O desejo de vingança formou a base da narrativa da promotoria. Michelle é a Ifigênia do título do livro de Malcolm. No mito grego, Agamenon, o pai, sacrifica Ifigênia, a filha, para que os deuses lhe concedam os ventos que levarão seus navios à guerra em Troia. Mais tarde, Clitemnestra, a mãe, se vinga apunhalando o marido.

Usando a etnia da acusada para fazer o retrato mítico da assassina vingativa, o promotor traçou o perfil de Borukhova, imigrante usbeque, judia da seita de Bukhara, como integrante de um grupo estranho. E se valeu da narração de testemunhas que descrevem os membros dessa seita como tribais, capazes de violência e até mesmo de assassinato. A imagem de Borukhova como o espírito de vingança materna serviu de cola para emendar pedaços de informações, como a gravação quase inaudível e mal traduzida de uma conversa entre os acusados, provas forenses que não cumpriram normas de pesquisa e um depósito de US$ 40 mil na conta bancária do assassino.

Relutante ou incapaz de aprender o valor do desempenho simpático, Borukhova errou tanto no figurino - saia comprida, paletó preto e, depois, branco - quanto na atitude. Em vez de encarar o júri, ela manteve a cabeça erguida e o olhar fixo no interrogador diante dela. Não seguindo o roteiro padrão, sua aparência inescrutável provocou ira e desconfiança.

Janet Malcolm não está interessada em condenar ou exonerar Borukhova. Sua briga é com as instituições e nossa capacidade de autoengano. Por isso coleciona fatos desconcertantes para argumentar que Borukhova não teve um julgamento justo. O sistema tê-la-ia condenado por causa de sua personalidade desagradável e estranha, capaz de causar reação alérgica na maioria das pessoas. O júri não teria avaliado corretamente a culpa da acusada, que tinha inimigos poderosos - como o guardião da lei que recomendou a transferência da custódia ao pai com base no seu desagrado pessoal de Borukhova e como o juiz, que apressava decisões para não atrasar as próprias férias.

O discurso de Janet Malcolm nada tem daquele que o juiz imparcial profere. Ela se arroga direitos de romancista. Coloca toda a ênfase na tendência humana de se deixar seduzir por narradores carismáticos. Expõe o nosso impulso de autoengano sempre que insistimos em representações coerentes, próprias das histórias sujeitas às convenções da ficção realista.

A tese de Malcolm, embora fascinante, não convence o leitor que reconhece o poder da narrativa, mas se sente capaz de separar a história persuasiva da desalinhavada, porém verdadeira. Da mesma forma que reconhece a diferença entre bons e maus advogados e acredita que a incompetência para levantar a evidência relevante se soma a narrativas fracas ou à venalidade dos juízes quando há condenação de inocentes ou exoneração de culpados.

Nos EUA, todos sabem que não são os piores criminosos que recebem a pena de morte, mas aqueles com os piores advogados. Estimam-se 100 mil inocentes entre os 2 milhões de norte-americanos encarcerados. Os culpados que andam soltos são ainda mais numerosos. O maior erro de um acusado é tentar economizar em honorários advocatícios.

Esse erro os réus no julgamento do mensalão não cometeram, pois pagaram fortunas a advogados famosos. Ainda assim parecem sujeitos à derrota. Os 11 ministros do STF decidirão. Eles interpretarão fatos e argumentos. Seus veredictos revelarão suas análises e muito mais. Pois, para ouvidos atentos, as falas dos juízes exibirão não apenas o que eles querem contar, mas também seus egos, vaidades e motivações.

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