domingo, julho 15, 2012
Tensão no coração da América - MAC MARGOLIS
O Estado de S.Paulo - 15/07
Na semana passada, os paraguaios estavam em pé de guerra com um vizinho e pouco tinha a ver com o impeachment ruidoso de Fernando Lugo. O motivo foi uma encrenca antiga: quem controla as águas do Rio Pilcomayo? E tal como a briga com os parceiros do Mercosul, essa é igualmente polêmica e sem solução evidente. Mas se nada for feito para solucioná-lo, pode ter consequências continentais.
Há anos os vizinhos duelam sobre as águas do rio compartilhado, que traçam parte da fronteira interiorana entre Bolívia, Paraguai e Argentina. O Pilcomayo é um portento. Nasce nos córregos dos Andes bolivianos, atravessa a baixada tropical boliviana, esbarra na planície do Chaco paraguaio e margeia vagaroso pela província argentina de Formosa. O gigante fluvial sul-americano esvazia-se no Rio Paraná e este, no Prata.
Suas águas são vitais para a agricultura e a pesca tradicional que sustentam centenas de milhares de ribeirinhos. Com o descobrimento de gás natural e petróleo nas suas margens, hoje o interesse nesta bacia está redobrado. A tensão, também. Por natureza, o Pilcomayo é traiçoeiro. Desce dos Andes, carregado de sedimentos e os deposita caoticamente pelo Chaco meridional, criando zonas férteis e calamidades crônicas. O assoreamento intenso distorce seu traçado e entope seu leito, ora encharcando gente e lavouras, ora roubando água.
O homem bem que tentou mexer. Desde 1991, governos argentinos e paraguaios lançaram obras heroicas, cavando canais de escape e irrigação na tentativa de ordenar o fluxo dágua. Mas a intervenção hidráulica nem sempre obedece à diplomacia e à natureza, ou a nenhuma das duas.
Assim, há poucas semanas, os paraguaios flagraram a maquinaria argentina empenhada em mais uma obra de engenharia heroica - na surdina. Trata-se de um novo grande canal (já tem 800 metros) que mais uma vez ameaça mudar o fluxo do Pilcomayo e patrocinar um desastre ecológico, segundo o governo de Assunção. "Desvio escandaloso", berrou o influente jornal ABC Color, que denunciou o plano argentino de "esgotar" a água paraguaia, reduzindo a poeira vasto trecho do Chaco.
A polêmica invade a pantanosa diplomacia regional. "Agora os imprevisíveis vizinhos engendram novo foco de conflito", declarou a delegação paraguaia ao Parlasur, o órgão legislativo do Mercosur. O ministro paraguaio de Obras Públicas, Enrique Salyn Buzarquis, denunciou a obra como atentado contra a soberania nacional e ameaça revidar, cavando um canal paraguaio.
Há ecos do passado nessa querela. Em estudo recente, Davig Zhang, pesquisador da americana Academia Nacional de Ciências, descobriu que mais de 8 mil guerras foram deflagradas por disputas sobre recursos naturais, incluindo a água. Egito e Sudão disputaram o controle do Nilo, em 1958, enquanto Israel brigou com meio mundo árabe pelo acesso ao Rio Jordão em 1967.
Riquíssima em recursos hídricos, a América Latina não é exceção. A organização World Water, que mapeia os conflitos hídricos, relaciona nove disputas pelas Américas Central, do Sul e Caribe, desde a década de 60. No ano passado, com o pretexto de desentupir o Rio San Juan, a Nicarágua mandou seus soldados invadir a Costa Rica para ganhar um naco do território.
Mas há também nas ondas do Pilcomayo um prenúncio do futuro. Em tempos de aquecimento global e extremos climáticos, a água pode ser o novo petróleo, estopim de desastres e guerras. Hoje, são 276 vias fluviais que atravessam fronteiras nacionais em 145 países. Suas bacias abrigam 40% da população mundial. Para abastecê-las, o mundo precisará 40% mais água doce até o ano 2030, segundo a ONU.
A próxima guerra mundial será pela água? Há controvérsias. Uma pesquisa da Universidade de Oregon mostra que nos últimos 50 anos, disputas pela água irromperam em violência em apenas 37 conflitos. No período, houve cinco vezes mais tratados do que guerras envolvendo águas internacionais.
Se alguém viu essa pesquisa na bacia do Pilcomayo, é outra história. Vilificado pelos vizinhos pela derrubada do presidente Lugo, o Paraguai foi suspenso dos dois grandes compactos latino-americanos, Mercosul e Unasul. Em consequência, Cristina Kirchner se recusa a reconhecer o novo governo de Assunção. Pelo jeito, a fossa diplomática abriu espaço para o novo canal.
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